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A desinformação e o marco interamericano de direitos humanos

Por Elder Maia Goltzman*


Foto: Nações Unidas / Tradução: "tente parar a divulgação de informações falsas".


Em recente pesquisa realizada pela Câmara dos Deputados e pelo Senado do Brasil, 79% dos entrevistados apontaram o WhatsApp como principal fonte de informação. Todavia, o aplicativo foi desenhado para funcionar como uma ferramenta de comunicação instantânea entre pessoas, não para exercer o papel de meio de obtenção de notícias. Essa sistemática acaba alimentando redes de desinformação e a Organização dos Estados Americanos (OEA) tem demonstrado preocupação com o comportamento.


Conceituar desinformação não é tarefa fácil, especialmente pela falta de consenso entre os pesquisadores. A Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão das Nações Unidas afirma que a ausência de assentimento torna uma resposta global desafiadora, ao tempo em que também demonstra a complexidade de lidar com o fenômeno.

Inicialmente, utilizou-se o termo fake news, que, inclusive, foi eleito pelo Dicionário Collins “palavra do ano” de 2021. No entanto, com o avançar do tempo, percebeu-se sua inadequação. Primeiro porque há uma imprecisão ao utilizar fake news como sinônimo de desinformação. O fenômeno é muito mais complexo que a mera utilização de “notícias falsas”. Um exemplo é o caso de fotos verdadeiras, usadas fora de contexto, para enganar a audiência. Ou ainda vídeos verdadeiros, mas com descrição enganosa, que buscam ludibriar o público que os assiste.


Wardle e Derakhshan (2018) evitam utilizar o termo, pois foi apropriado por políticos ao redor do globo para desqualificar instituições da imprensa cuja cobertura lhes desagrada. Sunstein (2021) aduz que líderes de relevância nacional gritam “fake news!” quando são objeto de crítica, ainda que nada falso tenha sido dito sobre eles e que as críticas sejam verdadeiras. Por isso, algumas pessoas que ocupam cargos públicos adotam como estratégia estigmatizar a imprensa livre como produtora do que eles dizem ser fake news e, em complemento, comunicam o que classificam como verdade em suas mídias sociais, especialmente o Twitter. A intenção é comunicar seus seguidores que eles detêm a verdade e são vítimas de perseguição dos meios de comunicação tradicionais.


Wardle e Derakhshan (2018) analisam a situação da crise informacional (information disorder) sob três primas. O primeiro é a desinformação, entendida como informação falsa (e a falsidade é vista em sentindo abrangente porque engloba contexto falso, conteúdo falso, conteúdo manipulado ou fabricado) em que o agente que a produz tem a intenção de causar dano. Apontam, nesse conceito, que há dois elementos importantes: a falsidade e a intenção. O agente produz e repassa a informação com plena consciência de que quer enganar quem a receber.


O segundo é a informação imprecisa (do inglês misinformation). Aqui são enquadradas as informações falsas que são repassadas sem que haja a intenção de enganar. Entende-se que há uma conexão com a pós-verdade e o viés de confirmação. Todos os seres humanos têm valores e crenças internalizados, assim, quando recebem uma notícia em que os fatos foram moldados, selecionados e apresentados dentro de um contexto político que favorece suas crenças (McINTYRE, 2018), imediatamente acreditam na veracidade do que leem. A pós-verdade seria justamente isso: a utilização dos fatos e dados da maneira que convém a quem apresenta. A verdade passa a ser customizada de acordo com os interesses e convicções das pessoas.


O terceiro prisma é a má informação (do inglês mal-information). Wardle e Derakhshan (2018) explicam que, neste caso, a informação é completamente verdadeira e existe apenas a intenção de causar prejuízo, como ocorre nos vazamentos e discursos de ódio. Para ilustrar, tome-se o caso dos atletas homossexuais que foram expostos durante as olímpiadas do Rio de Janeiro e, para alguns deles, em seus países de origem, a homossexualidade é considerada crime.


Foto: Artigo 19 / Visita oficial da CIDH para monitorar a situação dos direitos humanos e liberdade de expressão no Brasil, em 2018.


A Organização dos Estados Americanos preocupa-se com a desinformação e seu impacto no continente, todavia, o combate aos efeitos deletérios do problema não pode ocorrer de qualquer forma. A Convenção Interamericana de Direitos Humanos consagra a liberdade de expressão no art. 13, aduzindo que “(...) esse direito compreende a liberdade de buscar, receber e difundir informações e ideias de toda natureza, sem consideração de fronteiras, verbalmente ou por escrito, ou em forma impressa ou artística, ou por qualquer outro processo de sua escolha”.


Logo, existe uma dicotomia. Ao passo que a desinformação e sua influência negativa nas democracias americanas devem ser questionadas, a liberdade de expressão deve ser protegida. Não se pode aproveitar o ensejo para utilizar a desinformação como pretexto para aprovação de legislações que retrocedam nas conquistas relacionadas ao livre discurso.


A OEA, sabedora das dificuldades, aponta alguns parâmetros que devem nortear os países membros para lidar com a desinformação, especialmente em contextos eleitorais. De início, orienta a não criminalização. A elaboração de tipos penais que tornam a desinformação crime tende a gerar um efeito resfriador na população (chilling effect) e afasta as pessoas dos debates na esfera pública.


As plataformas digitais devem ser chamadas ao debate. A moderação de conteúdos em mídias como Facebook, Instagram e Twitter deve ser feita de forma transparente. O usuário deve saber exatamente o porquê da remoção, qual política da plataforma foi violada. Hoje, geralmente, o conteúdo é removido sob a alegação de que viola as regras da comunidade, sem citar exatamente qual.


Os servidores públicos precisam receber treinamento adequado para saber como proceder, especialmente aqueles envolvidos nos processos eleitorais. É necessária a promoção de campanhas de educação e conscientização acerca da problemática, inclusive para a população geral.


A política de zero rating das empresas de telecomunicação, especialmente telefonia celular, tem de ser reavaliada. Em linhas gerais, zero rating consiste em oferecer acesso a certos serviços sem que isso consuma dados do pacote contratado. Todavia, os usuários podem receber a desinformação por WhatsApp ou Facebook por conta do zero rating e, caso não tenham dados contratados, ficam impossibilitados de realizar a checagem.


A imprensa livre deve ser respeitada e qualquer estigma e descrédito aos meios de comunicação tradicional devem ser desencorajados. Os jornalistas têm de ter liberdade para atuar e seus direitos humanos (especialmente a integridade física e liberdade de imprensa) não podem ser objeto de punições pelo Estado ou setor privado.


Uma abordagem multissetorial é fundamental, envolvendo agentes públicos, partidos políticos, sociedade civil, imprensa, plataformas digitais, candidatos e agentes de segurança pública, como recomendando pela Missão de Observação Eleitoral da OEA, no Brasil, após pleito de 2018. A estratégia já foi implantada pelo Tribunal Superior Eleitoral nas eleições de 2020.

A desinformação, apesar dos esforços da OEA, ainda é um problema no continente. Os países membros devem se atentar para os parâmetros ditados pela organização na modernização de sua legislação e ao lidar com a temática. É importante que a Convenção Interamericana de Direitos Humanos não seja violada. O desafio permanece e os desdobramentos serão analisados de perto pela OEA.



*Elder Maia Goltzman é mestrando em Direito e Instituições do Sistema de Justiça (UFMA). Graduado em Direito (UFMA). Pesquisador no Núcleo de Estudos em Direito Internacional e Desenvolvimento (NEDID). Técnico na Clínica de Direito Internacional Humanitários da UFRGS. Servidor público.

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