*Por Gabriela Ruchel.
Foto: Jim Huylebroek/The New York Times.
País do sudoeste asiático, o Afeganistão emergiu como unidade política na posição de Estado-tampão entre a Índia Britânica e o Império Russo em expansão. Marcado por divisões internas e arranjos sociais próprios, os governos centrais afegãos tiveram, historicamente, diferentes graus de dificuldade, influência e controle sobre o território, cuja completa unificação se apresentou como um desafio permanente. Assim, tem-se um país composto por grupos autônomos, cuja identidade subnacional é baseada em graus de parentesco, residência e ocupação. Essa forma organizacional própria, contudo, não se resume a algo meramente tribal, uma vez que a coesão social abarca não apenas clãs, mas também subgrupos étnicos, seitas religiosas e grupos unidos por interesses próprios.
Ao analisar-se a origem dos conflitos no Afeganistão, faz-se imprescindível evitar reducionismos, os quais tendem a atribuir uma série complexa de eventos históricos a um único fator. Assim, deve-se considerar que as causas da guerra — seja ela geral ou específica — são inerentemente ecléticas e a relevância de todas as variáveis presentes necessita ser levada em conta. Entre um dos aspectos da crise afegã, contudo, considera-se que a sua histórica fragilidade estatal, ligada às permanentes disputas internas empregadas por diferentes agentes cuja força e protagonismo regional comprometeram a coesão e a ação do Estado, seja um dos fatores condicionantes para que se acentuasse o curso da guerra no país, sobretudo a partir da intervenção soviética em 1979. Tal fator, somado ao suporte externo ao conflito e aos próprios interesses políticos que o motivaram trariam consequências severas à vida política, econômica e social do Afeganistão.
No final da década de 1960, entretanto, nada indicava que o país mergulharia em uma guerra de longo prazo. O Afeganistão havia desfrutado de um inesperado boom turístico em 1969, sendo rota obrigatória entre o Irã e o subcontinente indiano. Com a monarquia presente em uma base constitucional desde 1964, nem mesmo o golpe de 1973 e o estabelecimento de uma República causou preocupação suficiente dentro ou fora do país. Nenhum dos períodos de estabilidade entre os sucessivos golpes de Estado anteriores, contudo, foi garantidor e mantenedor de qualquer legitimidade estatal forte e suficientemente coesa a ponto de assegurar a existência das estruturas necessárias à unidade e à centralização de poder em solo afegão.
Foto: Douglas E. Curran/AFP/Getty Images.
Em abril de 1978 a atenção internacional voltou-se para o golpe de Estado dado pelo Partido Democrático do Povo Afegão (PDPA), direcionado pelo partido comunista do Afeganistão. Em virtude da fragmentação interna do próprio partido, em setembro de 1979 Hafizullah Amin chegou ao poder após eliminar o antecessor, Nur Muhammad Taraki, mais moderado e mais respeitado em Moscou, com quem o país mantinha relações de cooperação desde os anos 1950. Enquanto isso, as forças contrarrevolucionárias, ancoradas nos fortes vínculos sociais que as uniam, mostraram-se difíceis de controlar. Assim, o regime viu-se à beira de um colapso, até ser resgatado pela chegada das tropas soviéticas, em 27 de setembro de 1979. As forças de comando instalaram Babrak Karmal no poder, além de estabelecer um contingente de cerca de 100 mil homens. Contrariando os desejos iniciais de permanecer no país por pouco tempo, a retirada soviética só aconteceu dez ano depois, em 1989, mostrando-se incapaz de sanar as debilidades do Estado afegão.
Como apontado por William Maley, professor da Australian National University, a vida política afegã é comumente retratada como um processo recorrente de cisão e fusão, onde a tendência integradora do Estado eventualmente se opõe à força centrífuga das tribos. Isso tende a levar ao reducionismo de que a guerra subsequente tenha sido meramente uma expressão disso, negando, de certo modo, a capacidade individual de determinados atores de agirem por conta própria. De fato, as tribos foram organizadas de uma maneira caracterizada pela ausência de instituições políticas, onde as oposições no nível segmentar do clã e da tribo normalmente impediam o surgimento de um poder central, exceto em momentos de crise. Como sugere Barnett Rubin, diretor do Centro de Cooperação Internacional da New York University, no caso afegão a tribo poderia ser definida como a maior unidade capaz de se unificar diante de um ataque externo, referência a um código de conduta com base em um método de resolução de conflitos calcado em um sistema de responsabilidade coletiva.
Mesmo em épocas em que o Estado não esteve ameaçado pelas oposições tribais, o desenvolvimento das instituições estatais nunca resultou em um sistema totalmente coerente, nem no abandono de práticas patrimoniais. Após a década de 1950, o Afeganistão buscou enfatizar seu caráter institucional, mas o poder permaneceu, em grande parte, uma prerrogativa do rei e da classe governante. A partir da década de 1970, com um sistema político amplamente disfuncional e incapaz de mobilizar apoio, abriu-se o caminho para o golpe de Estado do PDPA, levando à guerra civil e à intervenção soviética. A origem da guerra civil afegã, contudo, em contraste com a situação da maioria dos movimentos de guerrilha do século XX, não contou com o apoio das massas rurais lideradas por um grupo modernizador e revolucionário de elite. Com algumas exceções, os levantes foram espontâneos e demonstravam uma rejeição ao ateísmo e à ocupação estrangeira representada pelos soviéticos.
O desafio à coesão do Estado veio, de fato, essencialmente das diferentes formas de organizações sociais representadas pelas tribos, etnias e líderes religiosos. Não foram eles, contudo, os causadores diretos da guerra, e sim as organizações políticas com objetivos ideológicos e práticas institucionais específicas, sobretudo porque a mobilização inicial ocorreu em um contexto de grupos locais, com laços de lealdade específicos, e não de macro etnias organizadas. Quando a União Soviética interveio no Afeganistão, poucos especialistas acreditavam que o incipiente movimento de resistência dos mujahideen — como é chamada a guerrilha contrarrevolucionária — teria chances de resistir ao moderno exército soviético, mecanizado e tecnologicamente mais avançado. Neste aspecto, como apontado por Maley, faz-se duas observações: não se pode obstinar desfechos bem sucedidos em guerras cujos objetivos são irreais ou remotamente atingíveis.
No caso afegão, A URSS possuía um duplo empecilho: quanto mais fornecia suporte bélico e contingente militar ao regime do PDPA, mais comprometia a legitimidade do partido e sua possibilidade de institucionalização. Isso se deu, sobretudo, em virtude da natureza da sociedade afegã. Os habitantes das zonas rurais, por exemplo, nutriam a sensação de que possuíam um estilo de vida digno de se defender contra ameaças externas; as normas de reciprocidade altamente enraizadas ordenavam solidariedade em face de ataques estrangeiros. Além disso, as próprias particularidades da URSS caracterizavam-na como um tipo de agente externo a ser combatido, tendo em vista o ateísmo, fator incapaz de ser apagado ou mascarado na memória de uma sociedade majoritariamente muçulmana.
Cabe um destaque, ainda, às fraquezas presentes no PDPA, cujas rupturas internas o tornaram uma opção impopular frente a uma sociedade robusta e disposta a defender veementemente seu território da interferência estrangeira. O segundo empecilho sobre a guerra configura-se pelo protagonismo da forte convicção moral da resistência afegã — que permanecia fortalecida mesmo em face de perdas consideráveis — e do contínuo apoio externo, os quais atuaram como multiplicadores de força significativos. No que se refere ao papel exercido pelo apoio das forças externas, fica claro o peso que ele exerce sobre um movimento de resistência que o obtenha, uma vez que se constituiu em um inimigo cuja força é diametralmente oposta à de um movimento isolado e puramente dependente de redes tribais. Os apoiadores externos, como Paquistão e Estados Unidos, propiciaram não apenas armamentos, munições e logística material, mas também um senso de legitimidade para a luta, transmitindo aos resistentes a ideia de que seus objetivos eram compartilhados com outros detentores de poder, em vez de apenas excêntricos e idiossincráticos. Assim, também puderam manipular e controlar o cenário político a favor dos seus próprios interesses.
Foto: A Solomon/RIA Novosti Archive/Wikicommons.
De forma geral, a guerra afegã-soviética não teve vencedores, resultando em uma perda política para a União Soviética, ao passo que a luta entre a resistência afegã e os comunistas afegãos foi remetida ao campo de batalha. Ela tampouco foi um triunfo da “resolução de conflitos”, uma vez que os Acordos de Genebra levaram apenas a primeira onda de guerras do Afeganistão moderno a uma conclusão, mas foram incapazes de impedir as subsequentes. O golpe comunista de 1978 não foi evitável, tampouco contou com um grau significativo de mobilização social — em contraste com a revolução iraniana, por exemplo. Ele ocorreu como resultado de diversas incompreensões acerca da sociedade afegã e de seu funcionamento particular. Como destacado por Gilles Dorronsoro, professor de ciência política da Universidade de Paris Panthéon-Sorbonne, as forças militares se mostraram insuficientes para promover uma base legítima para a nova regra comunista, já que não importava o quão impressionante fosse o desempenho das Forças Armadas soviéticas, elas não seriam capazes de entregar os resultados políticos pelos quais o sucesso poderia ser definido. O conflito evidenciou, de fato, a descentralização de poder e a falta de estruturas institucionais do Estado que fossem suficientemente coesas e capazes de sustentá-lo.
A turbulência que viria após o fim do regime comunista e a retirada das tropas soviéticas, por sua vez, estava fundamentalmente enraizada no colapso do Estado e na exposição da política interna do Afeganistão à manipulação externa. Na análise de Dorronsoro sobre o período, tem-se que as alianças de guerra até poderiam nos dar a impressão de irracionalidade e caos; contudo, todos os eventos ocorridos são resultado de um rigoroso processo de lógica política. Afinal, a guerra civil afegã não foi “primitiva” ou “tribal”, mas fortemente política.
*Gabriela Ruchel é pesquisadora assistente no Núcleo Brasileiro de Estratégia e Relações Internacionais, inserida na linha de pesquisa sobre as Relações Internacionais do Continente Asiático com foco em Afeganistão. É atualmente mestranda em Ciência Política pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UFRGS, e graduada em Relações Internacionais pela mesma universidade.
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Referências Bibliográficas:
DORRONSORO, Gilles. Revolution Unending: 1979 to the Present. London: Hurst & Co Publishers, 2005. HALLIDAY, Fred. War and Revolution in Afghanistan. New Left Review, 1980.
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VISENTINI, Paulo Fagundes; PEREIRA, Analúcia Danilevicz; MARTINS, José Miguel; RIBEIRO, Luiz Dario; GRÖHMANN, Luiz Gustavo. Revoluções e Regimes Marxistas: rupturas, experiências e impacto internacional. Porto Alegre: Leitura XXI, 2013.
VISENTINI, Paulo Gilberto Fagundes. O Grande Oriente Médio: da descolonização à primavera árabe. Rio de Janeiro: Elsevier, 2014.