Por Amanda Filas Licnerski, Bianca Ketlyn Anderle Correia e Larissa Anacleto do Nascimento*
Foto: Povos indígenas no Suriname / Indigenous Navigator.
Um dos temas mais importantes na atualidade, no que tange os direitos humanos, é a relação entre direitos humanos e empresas. De acordo com os Princípios Orientadores da ONU sobre Empresas e Direitos Humanos, é necessário reconhecer, ao falar sobre o tema, que as empresas são órgãos especializados da sociedade, que desempenham funções especializadas e que devem cumprir todas as leis aplicáveis, e respeitar os direitos humanos.
Ademais, os mesmos Princípios Orientadores evidenciam que devem os Estados proteger contra violações de direitos humanos cometidas em seu território e/ou jurisdição por terceiros, incluindo empresas. Assim, considerando que toda violação de direitos humanos gera uma obrigação de reparar os danos suportados pelas vítimas e que toda vítima de uma violação a direitos humanos tem o direito de acesso aos recursos efetivos para fazer cessar ou para buscar reparação dos decorrentes danos, Estados são internacionalmente obrigados a garantir às vítimas de violações de direitos humanos cometidas por empresas o acesso aos recursos efetivos.
Neste sentido, ao falar que as empresas devem respeitar os direitos humanos, também significa dizer, de acordo com os Princípios Orientadores da ONU, que elas devem “se abster de violar os direitos humanos e devem enfrentar os impactos adversos nos direitos humanos com os quais tenham algum envolvimento”. Em relação a quais direitos humanos devem ser respeitados pelas empresas, são aqueles internacionalmente reconhecidos.
Considerando que entre os principais assuntos que envolvem empresas e direitos humanos, principalmente na América Latina, estão as comunidades tradicionais e o meio-ambiente, destaca-se, no rol dos direitos humanos internacionalmente reconhecidos, os direitos dos povos indígenas e comunidades tradicionais.
É exigido, conforme a Convenção 169 sobre Povos Indígenas e Tribais da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que os povos indígenas e comunidades tradicionais participem de maneira eficaz, livre, prévia e informada, da tomada de decisões (propostas legislativas, medidas administrativas, políticas públicas) que possam afetar seus direitos e interesses.
O Direito à Consulta Prévia, Livre e Informada, previsto na Convenção nº. 169 da OIT, constitui a principal forma de garantir a autodeterminação dos povos indígenas e das comunidades tradicionais, tendo a OIT, por meio da Comissão de Experts de Aplicação de Convênios e Recomendações - CEACR, enfatizado que “[…] el espíritu de consulta y participación constituye la piedra angular del Convenio 169 en la que se fundamentan todas las disposiciones del mismo”.
Empresas devem realizar também, em respeito aos direitos humanos, estudos de impactos ambientais e sociais antes de projetos e obras que necessitem tais, devendo-se garantir aos povos tribais a participação no processo de estudos de impacto socioambiental, respeitando as tradições e cultura dos povos (Corte IDH - Caso Pueblo Saramaka vs. Surinam). Conforme aponta a Comissão Interamericana no documento Derechos de los pueblos indígenas y tribales Sobre sus tierras ancestrales y recursos naturales: Normas y jurisprudencia del Sistema Interamericano de Derechos Humano, a participação dos povos indígenas em atividades relacionadas aos processos de estudos prévios de impacto social e ambiental é um requisito que deriva da natureza e do conteúdo desses estudos.
Na mesma linha, a CIDH, em conjunto com a Relatoria Especial sobre Direitos Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais (REDESCA), ressaltou no informe Empresas y Derechos Humanos: Estándares Interamericanos (2019), no qual realizou-se uma análise acerca das obrigações internacionais dos Estados em matéria de direitos humanos e empresas, que os direitos humanos estão relacionados com o desenvolvimento sustentável e o meio ambiente. Dessa maneira, tanto o Estado, a partir de suas funções reguladoras, fiscalizadoras e judiciais, quanto as empresas devem respeitar “o direito humano a um ambiente saudável e o uso da sustentabilidade e a conservação dos ecossistemas e da diversidade biológica, com atenção especial à sua estreita relação com os povos indígenas”.
Ainda de acordo com a CIDH, a obrigação dos Estados inclui o dever de prevenir as violações de direitos humanos, ou seja, aplica-se desde antes de autorizar uma atividade e conceder licenças, bem como durante a implementação e ciclo de vida do projeto em análise através de medidas de fiscalização.
Sabe-se que a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos ainda é escassa no que toca ao grande tema dos direitos humanos e empresas. No entanto, o Caso Pueblos Kaliña y Lokono vs. Suriname, ao tratar de situação envolvendo a atuação de empresas extrativistas, sem o consentimento prévio, livre e informado de comunidades tradicionais da região, e com a incidência de danos ambientais, torna-se de essencial conhecimento.
O Caso Pueblos Kaliña y Lokono vs. Suriname
Em 25 de novembro de 2015, a Corte Interamericana de Direitos Humanas (doravante Corte IDH ou Corte) sentenciou a República do Suriname no Caso Pueblos Kaliña y Lokono vs. Suriname, pela violação a diversas garantias, tais como o direito ao reconhecimento da personalidade jurídica, os direitos políticos, o direito à propriedade coletiva e o direito ao acesso à justiça.
O caso possui como contexto a falta de reconhecimento do direito de propriedade coletiva das terras, territórios e recursos naturais ocupados pelos povos indígenas Kaliña - constituído pelas aldeias Christiaankondre, Langamankondre, Pierrekondre, Bigiston, Erowarte e Tapuku - e Lokono, formado pelas comunidades Marijkedorp (ou Wan Shi Sha) e Alfonsdorp.
O território situado no rio Marowijne, localizado no extremo nordeste do Suriname e que faz fronteira com a Guiana Francesa, consiste em uma ocupação histórica ancestral de tais comunidades. Sendo que estes possuem uma relação especial, tanto material quanto espiritual, com seus territórios, bem como os vinculam à sua cultura e costumes, pautados pelo respeito ao meio ambiente.
À vista disso, os povos Kaliña e Lokono em 1972, antes do Suriname conquistar sua independência em 1975 e aceitar a competência contenciosa da corte em 1987, apresentaram diversas petições à Comissão de Independência, argumentando que a demarcação dos territórios indígenas realizada pelo Estado foram injustas.
Igualmente, entre 1975 e 1976 entraram com três ações nos tribunais internos com a mesma finalidade, no entanto, todas foram indeferidas sob o argumento de que a solicitação carecia de base jurídica. Isto porque nenhuma normativa interna reconhecia a possibilidade de os povos indígenas se constituírem como pessoas jurídicas e, por conseguinte, não lhes concedia o direito de adquirir títulos de propriedade coletiva.
Após o encerramento do conflito interno no Suriname em 1992, tais comunidades buscaram aparato interno com o intuito de recuperar seus territórios que haviam sido outorgados a terceiros pelo Estado. Todavia, a demanda foi indeferida em várias oportunidades. Adicionalmente, ao apresentar petições ao presidente do Suriname visando o reconhecimento dos direitos sobre seus territórios ancestrais, sequer receberam uma resposta.
Não obstante, o Suriname emitiu títulos de propriedade individual, outorgou concessões e licenças para a realização de atividades de extração de recursos naturais, as quais causam danos ao meio ambiente, para não indígenas, incluindo empresas, sem o consentimento prévio, livre e informado dos povos Kaliña e Lokono.
O caso no sistema interamericano
Na busca pela salvaguarda de seus direitos, em 16 de fevereiro de 2007 os líderes tradicionais que representam os povos Kaliña e Lokono, em conjunto com a Associação de Líderes Indígenas do Suriname e a Comissão de Direitos à Terra do Sob Marowijne, submeteu uma petição perante a Comissão IDH contra o Suriname pela violação dos artigos 3, 21 e 25 da CADH, em relação aos artigos 1 e 2 do mesmo instrumento.
Foto: Juízes no caso Caso Povos Kaliña e Lokono vs. Suriname. 03 e 04 de fevereiro de 2015 / Corte IDH.
Em 18 de julho de 2013, a CIDH emitiu um relatório de mérito, recomendando que o Estado:
i) Adotasse medidas legislativas e regulamentares que reconheçam os povos Kaliña e Lokono como pessoas jurídicas;
ii) Eliminasse as normas que impediam a proteção do direito à propriedade destas comunidades;
iii) Não realizasse condutas que possibilitassem que terceiros realizem atividades que possam afetar o direito de propriedade ou a integridade do território dos Povos Kaliña e Lokono;
iv) Revisasse os títulos de propriedade, títulos de aluguel e títulos de aluguel de longo prazo, emitidos em favor de pessoas não indígenas; adotasse medidas para delimitar, demarcar e conceder títulos de propriedade coletiva aos Povos Kaliña e Lokono das terras e territórios que eles tradicionalmente ocuparam;
v) Garantisse a proteção judicial e tornassem efetivos os direitos individuais e coletivos dos Povos Kaliña e Lokono, em relação ao território que tradicionalmente ocuparam;
vi) repararasse individual e coletivamente as consequências da violação dos direitos supracitados.
Considerando que o Suriname não cumpriu tais recomendações, a Comissão Interamericana submeteu o caso à Corte IDH em 28 de janeiro de 2014.
Reconhecendo-se competente para conhecer o caso, a Corte iniciou a deliberação de sua sentença de mérito em 17 de novembro de 2015. A fim de elaborar seu julgamento, a Corte IDH elencou e dividiu os fatos do caso nos seguintes tópicos: 1) Povos Kaliña e Lokono; 2) assentamentos “maroons” (a seguir traduzidos para quilombolas) no território reclamado como ancestral pelos Povos Kaliña e Lokono; 3) os povos indígenas de acordo com o ordenamento jurídico do Suriname; 4) ações realizadas pelos povos indígenas para o reconhecimento de seus direitos; 5) estabelecimento de reservas naturais; 6) projeto de loteamento urbano denominado “Tuinstad Albina” (“Garden City Albina”).
Ainda, em relação aos direitos da Convenção Americana de Direitos Humanos analisados no caso, estão: 1) direito à personalidade jurídica, com relação aos artigos 21, 25, 1.1 e 2 da CADH; 2) direito à propriedade coletiva e direitos políticos, em relação aos artigos 1.1 e 2 da CADH; 3) direito à proteção judicial, com relação aos artigos 1.1, 2, 13 e 23 da CADH.
De acordo com a Corte IDH, os Povos Kaliña e Lokono, como povos indígenas protegidos pelo direito internacional dos direitos humanos, têm como garantido o território coletivo por eles utilizado e ocupado tradicionalmente. Desse modo, o Estado possui a obrigação de adotar medidas especiais para reconhecer, respeitar, proteger e garantir aos integrantes desses povos o direito de propriedade coletiva desses territórios. Em sua sentença, a Corte IDH relembrou que os povos indígenas, em virtude de sua própria existência, têm direito de viver livremente em seus territórios. Da mesma forma, a estreita relação que os indígenas possuem com a terra deve ser reconhecida e entendida como a base fundamental de sua cultura, vida espiritual, integridade e economia.
Destaca-se que, aqui, serão abordados principalmente os argumentos e entendimentos da Corte que envolvem empresas e direitos humanos, considerando-se o escopo do presente texto. Desse modo, no contexto do caso em tela, o foco está nas garantias à propriedade coletiva dos povos indígenas contra a concessão de mineração dentro da Reserva Natural Wane Kreek.
De acordo com a Corte IDH, em 1958 o Suriname concedeu concessão de mineração até o ano de 2033 à empresa Suralco (com início efetivo das atividades em 1997), para a extração de bauxita no leste do país, sem a consulta efetiva aos Povos Kaliña e Lokono e sem a realização de um estudo de impacto ambiental a respeito.
A partir dos fatos do caso, a Corte Interamericana afirmou que um Estado deve dispor de mecanismos que garantam a efetiva participação dos povos indígenas, por meio de procedimentos culturalmente adequados, para a tomada de decisões que afetem esses povos - não apenas por uma questão de interesse público, mas também para garantir o exercício de seu direito de participar na adoção de decisões sobre matérias que afetem seus interesses, de acordo com seus próprios procedimentos e instituições, em relação ao artigo 23 da Convenção Americana. No caso em tela, a Corte IDH concluiu que o Estado não garantiu participação efetiva, por meio de um processo de consulta aos povos Kaliña e Lokono, antes de empreender ou autorizar a exploração da mina de bauxita em parte de seu território tradicional.
Aqui, importante destacar que a Corte IDH se manifestou sobre a violação do artigo 23 da CADH a partir da aplicação do princípio iura novit curia para tal, uma vez que as partes não haviam alegado sua violação. Para o Tribunal Interamericano, as violações do artigo 23 se relacionaram, entre outros, com a falta de participação efetiva, através de um processo de consulta, dos povos indígenas Kaliña e Lokono, sobre a concessão de mineração a empresas particulares dentro de uma das reservas naturais do território tradicional.
Em relação ao estudo de impacto social e ambiental, a Corte constatou que o mesmo, no caso concreto, ao não contar com a participação dos povos indígenas e não sofrer fiscalização estatal - entre outros fatores - não foi realizado de acordo com as disposições da jurisprudência interamericana de direitos humanos ou com os padrões internacionais sobre o assunto. Ademais, constatou-se, na sentença, que a extração de bauxita em Wane Kreek gerou graves danos ao meio ambiente e aos recursos naturais necessários para a subsistência e o desenvolvimento dos Povos Kaliña e Lokono.
Foto: Representantes da Comissão Interamericana de Direitos Humanos no Caso Povos Kaliña e Lokono vs. Suriname. 03 e 04 de fevereiro de 2015 / Corte IDH.
Nesse contexto, afirmou-se - um dos motivos para esse caso ser de extrema relevância para a jurisprudência interamericana sobre empresas e direitos humanos - que, embora as atividades de mineração que afetaram o meio ambiente e, portanto, os direitos dos povos indígenas, tenham sido realizadas por atores privados, o Estado, ao não garantir ou conduzir um estudo de impacto ambiental e social de forma independente e antes do início da extração de bauxita e ao não supervisionar o estudo que foi realizado posteriormente, não cumpriu com seu dever estatal perante a proteção de direitos humanos, especialmente no caso de área natural protegida e territórios tradicionais/ancestrais para povos indígenas, tribais e tradicionais.
Em sua argumentação na sentença do Caso Pueblos Kaliña y Lokono Vs. Surinam, a Corte IDH citou os Princípios Orientadores da ONU (acima mencionados) e reforçou que:
i) as empresas devem agir de acordo, respeitar e proteger os direitos humanos, bem como prevenir, mitigar e ser responsáveis pelas consequências negativas de suas atividades sobre os direitos humanos;
ii) Estados têm a responsabilidade de proteger os direitos humanos das pessoas contra violações cometidas em seus territórios e/ou jurisdições por terceiros, inclusive empresas.
Desse modo, a Corte IDH concluiu, no que toca especificamente à matéria de direitos humanos e empresas, que o Estado do Suriname não garantiu a participação efetiva por meio de um processo de consulta aos povos Kaliña e Lokono; que, da mesma forma, não foi realizado um estudo de impacto ambiental e social adequado e que os benefícios do referido projeto de mineração não foram compartilhados com os povos tradicionais; e, que, por fim, o Suriname não adotou os mecanismos necessários para garantir os direitos expostos acima.
Com base no exposto, a Corte considerou, no que tange aos fatos acima destacados, que o Estado do Suriname violou os artigos 21 e 23 da Convenção Americana de Direitos Humanos, em relação aos artigos 1.1 e 2 da mesma, em prejuízo dos povos Kaliña e Lokono e seus membros.
Relevância do caso para o Brasil
No Brasil, a partir da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/88), buscou-se superar o processo de aculturação relacionado aos povos tradicionais do território brasileiro, presentes em todas as demais Constituições anteriores, reconhecendo o Brasil como um país multicultural e pluriétnico, conforme é explicitado no artigo Territórios Indígenas: Repercussões do SIDH no Direito Brasileiro. Essa ideia fica bastante evidente no artigo 215 da CRFB/88, disposto na seção “Da cultura” do capítulo III “Da educação, da cultura e do desporto”, quando diz expressamente que “O Estado Brasileiro garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais”.
Ademais, a Carta Constitucional brasileira conta com um capítulo específico sobre os povos indígenas, onde se destacam os artigos 231 e 232. O Art. 231 da CRFB/88 reconhece a organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, além dos direitos originários sobre as terras que estes povos tradicionalmente ocupam. Este dispositivo legal é categórico ao afirmar, em seu parágrafo 4º, que “as terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis”. O Art. 232, por sua vez, garante o direito de acesso à justiça, visando a defesa de seus direitos e interesses.
Diante da garantia e proteção dos direitos dos povos indígenas no bojo da Constituição brasileira, guardiã dos direitos humanos em âmbito nacional, era de se esperar que em mais de 30 anos, houvesse uma evolução significativa na sociedade sobre a importância de se efetivar estes direitos.
Entretanto, o que se percebe, é que ainda há uma grande dificuldade de se abandonar a lógica assimilacionista e integracionista em relação aos povos indígenas e, principalmente, seus territórios. Isto fica evidente com o Projeto de Lei 490/07, sobre demarcação de terras indígenas, que traz discussões tais como o marco temporal, que em síntese, tem como objetivo garantir as terras tradicionalmente ocupadas, apenas aquelas que eram habitadas pelos povos indígenas na promulgação da Constituição de 1988. Este Projeto de Lei ainda sugere mudanças no que diz respeito ao usufruto destes territórios pelos povos originários, cogitando a ideia de que os interesses dos povos indígenas não poderiam se sobrepor às políticas de defesa e soberania nacional, o que justificaria, por exemplo, a instalação de bases militares nestes locais ou a mineração. Também dispõe sobre a exploração econômica nestes territórios, admitindo-se a cooperação e contratação de terceiros não indígenas, e a permissão de turismo nas terras indígenas.
Foto: Fábio Nascimento/MNI.
Não se pretende aqui desconhecer que muitas destas atividades já aconteçam de modo ilegal. Para exemplificar, sabe-se que no Brasil as atividades exercidas por empresas que violam os direitos indígenas e ambientais são facilitadas. De acordo com o relatório Cumplicidade na Destruição III – Como corporações globais contribuem para violações de direitos dos povos indígenas da Amazônia Brasileira, elaborado pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) em conjunto com a Amazon Watch em 2020, empresas de mineração, agronegócio e energia, que estão vinculadas a degradação ambiental, e invasão de terras indígenas, ao invés de serem responsabilizados pelas condutas ilícitas, recebem bilhões de investimentos de instituições financeiras de inúmeros países.
Ou seja, as mudanças que o referido Projeto de Lei visa alcançar legalmente, deixam de considerar a relação dos povos tradicionais com suas terras, que para além de uma questão de propriedade privada na concepção ocidental, é uma condição imprescindível para que todos os seus demais direitos fundamentais sejam efetivados.
Assim, ao propor este tipo de legislação, esquecem-se os parlamentares que, muito mais do que o disposto na Constituição brasileira, o Brasil também é signatário de Tratados Internacionais, como a Convenção nº. 169 da OIT, mencionada anteriormente, que protegem os direitos humanos dos povos indígenas. E se, voluntariamente, o Brasil tornou-se signatário destes Tratados, também voluntariamente optou por respeitar os direitos e liberdades assegurados nestes documentos internacionais.
Nesse sentido, quando a Corte IDH reafirma, no Caso Pueblos Kaliña y Lokono vs. Suriname, que entes privados têm o dever de respeitar os direitos humanos e precisam ser responsabilizadas quando não o fazem ao passo que o Estado do Suriname possui a obrigação de adotar medidas especiais para reconhecer, respeitar, proteger e garantir aos integrantes desses povos o direito de propriedade coletiva desses territórios, bem como deve protegê-los contra violações cometidas em seus territórios e/ou jurisdições por terceiros, inclusive empresas, faz isso como base os documentos internacionais de proteção dos direitos humanos dos quais o Brasil também é signatário e deve respeitar, implicando também na obrigação do Estado brasileiro em adotar todas as referidas medidas.
Isto se confirma ao relembrar que o Brasil já foi condenado perante à Corte IDH em caso análogo (Caso Povo Indígena Xucuru e seus membros vs. Brasil), onde se declarou a responsabilidade do Estado brasileiro pela violação dos direitos à garantia judicial em prazo razoável, da proteção judicial e da propriedade coletiva do Povo Xucuru e seus membros.
Para aprofundamento dos temas abordados acima, sugerem-se a leitura dos seguintes documentos:
Artigo Livre determinação indígena: entre o direito internacional e a tragédia, publicado em 2020.
Informe Guía para el acceso a la información ambiental en contextos de industrias extractivas de minería e hidrocarburos, publicado pela Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), em 2021.
*Amanda Filas Licnerski, Bianca Ketlyn Anderle Correia e Larissa Anacleto do Nascimento são pesquisadoras do Observatório Cosmopolita do Sistema Interamericano de Direitos Humanos e do NESIDH-UFPR.