Por Elisa Hartwig e Gabriel de Oliveira Borba*
Foto: UN Photo/ICJ-CIJ/Frank van Beek. Courtesy of the ICJ.
Na quinta-feira, dia 04 de fevereiro de 2021, a Corte Internacional de Justiça julgou as exceções preliminares interpostas pelos Emirados Árabes Unidos no caso sobre a Aplicação da Convenção Internacional para a Eliminação de Todas das Formas de Discriminação Racial (Catar vs. Emirados Árabes Unidos). Haja vista que inexiste presunção ou expectativa de jurisdição por parte da Corte, deve-se debater, preliminarmente, todas as questões sobre sua competência antes de adentrar nas teses de mérito. Em razão disso, o Tribunal vem discutindo as objeções preliminares desde o início das Audiência Públicas, no dia 31 de agosto de 2020. Para um panorama geral do caso, recomenda-se a leitura do artigo publicado pelo Cosmopolita sobre as audiências de exceções preliminares.
Em seu julgamento, o qual é final e cogente para as partes, a Corte julgou procedente, por onze votos a seis, a primeira objeção preliminar alegada pelos EAU, concernente à falta de jurisdição ratione materiae do Tribunal para julgar a demanda.
Para isso, o Tribunal realizou uma interpretação do artigo 1.1 da ICERD, especificamente de seu termo “origem nacional” e se este engloba a “nacionalidade” como alegado pelo Catar. Como observado pela Corte, a referência a “origem” denota um vínculo pessoal com um grupo nacional ou étnico desde o nascimento, sendo uma característica inerente, enquanto a nacionalidade é um atributo legal que depende do poder discricionário do Estado e pode mudar durante a vida de uma pessoa. Ademais, esta entende que os parágrafos 2º e 3º do Artigo 1º sustentam a interpretação de que o termo “origem nacional” não abrange a “nacionalidade atual”. Isso porque a exclusão expressa de diferenciações entre cidadãos e não-cidadãos do escopo da Convenção, presente no parágrafo 2º, indicaria que esta não proíbe os Estados Partes de adotarem medidas que restrinjam os direitos de não-cidadãos de entrar e residir no Estado com base em sua nacionalidade atual — direitos que estão em disputa no caso.
Além disso, a Corte realiza um exame do objeto e propósito da Convenção, a qual foi elaborada no contexto do movimento de descolonização da década de 1960. Assim, analisando seu Preâmbulo, é possível verificar que o objetivo do documento consiste em eliminar todas as formas e manifestações de discriminação racial contra seres humanos em razão de características inerentes, reais ou percebidas. Em razão disso, a CIJ entende que o termo “origem nacional” não abrange a nacionalidade atual.
É importante recordar que o Comitê da ICERD, em sua decisão no contexto da comunicação apresentada pelo Estado do Catar, entendeu que as medidas baseadas na nacionalidade atual enquadram-se no escopo ratione materiae da Convenção. A principal razão para tanto foi o seu entendimento, previsto em sua Recomendação Geral XXX, de que o “tratamento diferenciado com base na cidadania ou status migratório constituirá discriminação se os critérios para essa diferenciação, julgados em função dos objetivos e propósitos da Convenção, não forem aplicados em conformidade com um objetivo legítimo, e não forem proporcionais a realização deste objetivo”. Quanto a isso, a CIJ apenas recordou que não está vinculada à interpretação do Comitê acerca da Convenção e reiterou suas próprias conclusões.
Cabe ressaltar que o Estado do Catar também alegou que as medidas adotadas pelos EAU geraram uma discriminação indireta contra pessoas de origem catari em um sentido histórico-cultural, nomeadamente pessoas nascidas no Catar, incluídos seus cônjuges, filhos e pessoas ligadas de alguma forma ao país. A Corte, por sua vez, entende que, embora a ICERD proíba todas as formas e manifestações de discriminação racial, quer decorra da finalidade de uma determinada restrição ou de seus efeitos e, não obstante, as medidas baseadas na nacionalidade catari possam ter efeitos secundários ou colaterais para tais pessoas, estas não configuram discriminação racial no sentido dado pela Convenção.
Foto: UN Photo/ICJ-CIJ/Frank van Beek.
O caso em questão é uma disputa judicial entre Estados, comumente chamada de casos contenciosos pela Corte, determinado pelo artigo 34 do Estatuto. Sendo assim, uma vez que não existe jurisdição universal para cortes internacionais, deve-se estabelecer limites sobre a competência do órgão judicial e determinar quais matérias poderão, ou não, ser julgadas no âmbito internacional. A CIJ, por sua vez, faz jus ao princípio “compétence de la compétence”, que concede poder ao Tribunal para decidir sobre a sua jurisdição, estabelecido pelo artigo 36 (6) do Estatuto.
O artigo 36 do Estatuto exemplifica as razões pelas quais a Corte tem jurisdição em disputas contenciosas, devendo sempre levar em consideração a imprescindibilidade do consentimento das partes sobre o litígio em questão. Isto posto, um caso pode ser apresentado diante da CIJ quando existe um special agreement celebrado entre as partes; quando a jurisdição for preestabelecida por um Tratado ou Convenção Internacional (a lista exaustiva pode ser encontrada aqui); ao reconhecer a jurisdição compulsória, em reciprocidade com outro Estado, para disputas sobre interpretação de um tratado, questões de direito internacional, violações de obrigações internacionais e suas devidas dimensões e reparações. Sob solicitação das partes, o Tribunal também possui jurisdição para interpretar seus julgamentos e, caso se conheçam novos fatos ou questões pelo Tribunal, jurisdição para revisar decisões proferidas anteriormente, como foi estipulado pelos artigos 60 e 61 do Estatuto.
No caso em questão, o Catar instituiu um processo contra os Emirados Árabes Unidos argumentando que a Corte teria jurisdição em razão do artigo 36 (1) do Estatuto e do artigo 22 da ICERD, que, por sua vez, autoriza submeter divergências para a CIJ caso os Estados não consigam resolver a disputa por outros meios de resolução de conflitos.
Em razão de ter entendido que não possui jurisdição ratione materiae para julgar o caso em análise, o Tribunal concluiu não ser necessário examinar a segunda exceção preliminar alegada pelos EAU de ausência do cumprimento dos requisitos procedimentais dispostos na cláusula compromissória do artigo 22 da ICERD pelo Estado do Catar. Por fim, a CIJ considerou, por onze votos a seis, que não tem jurisdição para julgar o pedido apresentado pelo Estado do Catar em 11 de junho de 2018.
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*Elisa Hartwig e Gabriel de Oliveira Borba são pesquisadores do Observatório Cosmopolita da Corte Internacional de Justiça.
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