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Catar v. EAU: Estados apresentam à CIJ exceções preliminares no caso sobre aplicação da ICERD

*Por Elisa Hartwig e Victor Tozetto Da Veiga.

Foto: Eva Plevier/Reuters.


Nas duas últimas semanas, a Corte Internacional de Justiça (CIJ) sediou a audiência de exceções preliminares do caso sobre a Aplicação da Convenção Internacional para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (ICERD), instaurado pelo Catar contra os Emirados Árabes Unidos (EAU). Mais precisamente, nos dias 31 de agosto e 2, 4 e 7 de setembro, a Corte ouviu os argumentos dos EAU, que opuseram as exceções preliminares em abril do ano passado, e do Catar, que pede a rejeição dessas objeções. Agora, a Corte iniciará a deliberação sobre o tema e deve em breve publicar sua decisão.


Confira a seguir um relato das alegações realizadas pelas partes durante a audiência de exceções preliminares, e entenda a história procedimental do caso.


A demanda do Catar


A demanda à qual se refere a audiência de exceções preliminares foi instituída pelo Estado do Catar no dia 11 de junho de 2018. Parte de um complexo confronto geopolítico que gerou diversos procedimentos contenciosos internacionais, essa disputa se refere, especificamente, a supostas violações dos EAU à ICERD, da qual ambos os Estados são partes. O Catar alega que, a partir do dia 5 de junho de 2017, os EAU implementaram uma série de medidas discriminatórias em relação aos cataris, baseadas apenas em sua origem nacional, o que seria vedado pelo artigo 1.1 da ICERD.


Entre tais medidas, é possível citar a expulsão de todos os cataris do território emiradense em duas semanas; a proibição de entrada ou passagem dos cataris pelos EAU; a exigência de que os emiradenses deixassem o Catar sob pena de sanções civis e criminais; o fechamento do espaço aéreo e de portos marítimos e a proibição de transporte entre os Estados, o que juntamente com medidas similares perpetradas pela Arábia Saudita, Egito e Bahrein teria deixado o Catar em uma posição de inacessibilidade; a proibição de qualquer discurso de apoio ao Catar, sob pena de multa ou até 15 anos de encarceramento; o fechamento dos escritórios da Al Jazeera e o bloqueio de suas transmissões e websites, bem como de outras empresas cataris. Há também a alegação de que os EAU estariam incitando o discurso de ódio e participando de ataques através dos meios de comunicação contra os cataris.


Como argumenta o Estado do Catar, em razão de sua proximidade, cultura e tradições similares, além da mesma linguagem, muitos cataris são casados e constituem famílias com emiradenses, além de viajar e trabalhar comumente nos EAU. Em razão disso, o Estado afirma que os efeitos das medidas foram devastadores para seus cidadãos, implicando violações aos direitos humanos contidos na ICERD, como o direito ao casamento e à escolha do cônjuge, o direito à liberdade de expressão e de opinião, o direito à saúde pública e aos tratamentos médicos em curso, o direito à educação, o direito ao trabalho e, o direito à propriedade.


Dessa forma, o Estado do Catar requereu que a Corte reconheça que os EAU violaram os artigos 2, 4, 5, 6 e 7 da ICERD, pelo desrespeito a todos os direitos humanos referidos, ao implementar medidas discriminatórias em prejuízo dos cataris em razão de sua origem nacional, além de ativamente participar de atos de discriminação racial, incentivando uma cultura de preconceito.




As medidas provisórias deferidas (e indeferidas) pela Corte e jurisdição prima facie


Simultaneamente à instauração da demanda, o Estado do Catar requereu o deferimento de medidas provisórias em acordo com o artigo 41 do Estatuto da CIJ e dos artigos 73, 74 e 75 das Regras da Corte. Assim, em julho de 2018, após a realização de audiência, a Corte determinou: (i) que as famílias que incluíssem um catari e tivessem sido separadas em razão das medidas adotadas pelos EAU fossem reunidas; (ii) que os estudantes afetados pelas medidas pudessem concluir seus estudos nos EAU ou obter seus registros educacionais para finalizá-los em outro local; (iii) que os cataris afetados pelas medidas tenham acesso aos tribunais ou outros órgãos judiciais dos EAU; e (iv) que ambas as partes abstenham-se de qualquer ação que possa agravar ou estender a disputa perante o Tribunal.


Na decisão, a Corte declarou que possui, em uma análise prima facie, jurisdição para analisar o caso, de acordo com o artigo 22 da ICERD. Esse artigo estabelece que controvérsias relativas à “interpretação ou aplicação” da ICERD que não forem resolvidas “por negociações ou pelos processos previstos expressamente nesta Convenção” deverão ser submetidas à CIJ se as partes em disputa não concordarem em relação a outro método de resolução de conflitos.


Primeiramente, portanto, tal normativa exige que haja uma controvérsia entre Estados partes relativa à interpretação ou aplicação da Convenção, o que a CIJ considera estar presente no caso em tela. Isso porque as partes discordam acerca da interpretação do termo “origem nacional” contido no artigo 1.1 da Convenção (conforme será explicado em detalhes adiante).


Em segundo lugar, ainda de modo sumário, a Corte considerou que as “precondições procedimentais” previstas no artigo 22 da ICERD foram preenchidas, quais sejam, que, ao tempo de sua submissão, a controvérsia não tenha sido resolvida (i) por negociações ou (ii) por processos previstos na própria Convenção. Importante ressaltar que, no dia 8 de março de 2018, aproximadamente três meses antes de recorrer à CIJ, o Estado do Catar depositou uma comunicação perante o Comitê da ICERD, ativando o procedimento de resolução de controvérsias que está previsto nos artigos 11 a 13 da Convenção e é referenciado pelo artigo 22


Esse procedimento continua, até hoje, correndo em paralelo ao caso perante a CIJ (o que, como veremos, constitui um dos argumentos dos EAU para desafiar a jurisdição da Corte). Apesar disso, ao determinar as medidas provisórias em 2018, a Corte se satisfez em afirmar a existência de jurisdição prima facie sobre o caso com base em uma oferta de negociação formulada pelo Catar em 25 de abril de 2018 e ignorada pelos EAU.


Vale mencionar que, em março de 2019, os EAU também requereram a concessão de medidas provisórias. Mas, em 14 de junho do mesmo ano, após a realização de audiência, a Corte indeferiu o pedido.


As exceções preliminares opostas pelos EAU e a mais recente audiência


Apresentada a história procedimental do caso, cabe retornar às exceções preliminares opostas pelos EAU em 29 de abril de 2019. Foram essas exceções o objeto da audiência que ocorreu de 31 de agosto a 7 de setembro deste ano (virtualmente, em razão da pandemia do COVID-19). O presente texto se debruça principalmente sobre as alegações orais das partes, que modificaram, em maior ou menor medida, as manifestações escritas originais.


Talvez a mais significativa dessas mudanças tenha sido a renúncia dos EAU a uma de suas três exceções preliminares. Durante seus argumentos orais, os EAU explicitamente abriram mão de sua terceira exceção preliminar, segundo a qual a demanda deveria ser inadmitida em razão de o Catar ter supostamente cometido abuso de processo ao recorrer à Corte.


Desse modo, restaram apenas duas exceções. Segundo os EAU, (i) a disputa estaria fora do âmbito material (ratione materiae) da ICERD e (ii) o Catar não teria cumprido com as precondições procedimentais estabelecidas no artigo 22 da ICERD. Os principais argumentos esgrimidos na audiência, tanto pelos EAU quanto pelo Catar, serão agora analisados em conjunto em relação a cada uma das exceções.


Foto: Frank Van Beek/ICJ.


Primeira exceção preliminar


A primeira das exceções preliminares opostas pelos EAU sustenta que a Corte não tem competência para conhecer do caso em razão da matéria a que se refere a disputa. Isto é, trata-se de uma objeção à jurisdição ratione materiae da CIJ, pois, para os EAU, os fatos trazidos à apreciação da Corte estão fora do âmbito material de aplicação da ICERD.


Essa argumentação depende essencialmente de uma suposta distinção conceitual entre “origem nacional” e “nacionalidade”. Para os EAU, apenas grupos discriminados especificamente em razão de sua origem nacional estão protegidos pela ICERD, conforme a definição de discriminação racial estabelecida artigo 1.1 da Convenção. Por outro lado, distinções legítimas entre nacionais e estrangeiros (isto é, distinções com base na nacionalidade atual de indivíduos, ao invés de sua origem nacional) seriam excluídas do âmbito da Convenção, como confirmariam seus artigos 1.2 e 1.3. De acordo com o posicionamento dos EAU, a ICERD faz referência, por meio do conceito de origem nacional, a características intrínsecas, imutáveis e hereditárias do indivíduo, enquanto a nacionalidade é uma questão de soberania dos Estados, uma relação meramente legal entre o indivíduo e “seu” Estado.


Portanto, os atos dos EAU seriam legítimos por explicitamente se dirigirem a cataris em razão de sua nacionalidade. Durante a audiência, os representantes dos EAU repetiram, mais de uma vez, que as medidas adotadas teriam como base “a nacionalidade, e apenas a nacionalidade” dos cataris; essa seria a “verdadeira natureza da disputa”, ao invés de uma suposta discriminação racial em razão de origem nacional. Assim, os atos escapariam à regulação da Convenção pois, materialmente, não configurariam discriminação racial.


O Estado do Catar, por outro lado, sustenta que os meios interpretativos estabelecidos no artigo 31 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados apontam para a interpretação correta, segundo a qual o conceito de origem nacional protegido pela ICERD abrange a “nacionalidade atual” dos indivíduos. Nessa leitura, os artigos 1.2 e 1.3 da Convenção teriam por objetivo ressalvar apenas certas distinções legítimas entre nacionais e não nacionais (como, por exemplo, em relação ao direito de votar), sem excluir por completo a nacionalidade do âmbito de proteção da Convenção. Assim, quando uma diferença de tratamento entre nacionais e estrangeiros não esteja apoiada por uma justificativa razoável em acordo com os artigos 1.2 e 1.3, haveria discriminação racial com base em origem nacional, que seria capaz de absorver a nacionalidade atual. Argumenta o Catar que, de fato, as medidas instituídas pelos EAU não possuem justificativa razoável, pois identificam todos os cataris, coletivamente, como um risco para a segurança nacional.


O Catar sustenta, alternativamente, que os cataris foram discriminados pelos EAU especificamente em razão de sua origem nacional. Afinal, apesar dos laços estreitos entre cataris e emiradenses, aqueles possuiriam uma origem nacional própria e distinta, em um sentido histórico e cultural. Os cataris teriam sido discriminados não por sua nacionalidade em sentido estrito, mas por suas características pessoais e identidade cultural, como seu sotaque, suas roupas, suas ideias e liberdade de expressão. Inclusive, pessoas sem nacionalidade catari teriam sido discriminadas por serem identificadas culturalmente com o Catar.


Crucialmente, o Catar alega que a ICERD proíbe a discriminação tanto em objetivos quanto em efeitos, conforme a dicção do artigo 1.1 da Convenção. Ou seja: mesmo que se admita como legítimo o objetivo dos EAU de distinguir com base na nacionalidade atual dos indivíduos (argumento que o Catar, evidentemente, não concede), as medidas adotadas constituiriam, de qualquer modo, discriminação racial, pois seu efeito foi o de discriminar com base na origem nacional catari.


Por fim, o Catar apontou que a CIJ deve conferir grande peso às manifestações do Comitê CERD, responsável por monitorar o cumprimento da Convenção. O Comitê não apenas esclareceu sua interpretação sobre o tema da discriminação contra não cidadãos por meio da Recomendação Geral nº 30, mas também rejeitou a exceção preliminar apresentada pelos EAU de incompetência ratione materiae no contexto da comunicação interestatal apresentada pelo Estado do Catar.


Segunda exceção preliminar

O objeto da segunda exceção preliminar, por sua vez, são os requisitos procedimentais dispostos na cláusula compromissória do artigo 22 da CERD e que devem ser cumpridos pelo Estado demandante para que se possa recorrer à CIJ. Para os EAU, essas precondições não foram cumpridas e, por isso, o caso deve ser inadmitido.


No campo dos fatos, é importante relembrar que o Catar enviou uma carta com oferta de negociação aos EAU em 25 de abril de 2018 (nunca respondida) e que, antes, em 8 de março de 2018, o Estado catari havia protocolado uma comunicação contra os EAU perante o Comitê CERD, seguindo o procedimento de solução de controvérsias previsto nos artigos 11 a 13 da Convenção. Paralelamente a esse procedimento, que continua ativo, o Catar submeteu a demanda à CIJ.


Assim, em relação a esse aspecto, havia inicialmente duas principais controvérsias. Primeiramente, as partes divergiam sobre a cumulatividade ou a alternatividade das precondições procedimentais do artigo 22, quais sejam, (i) negociação e/ou (ii) recurso aos meios previstos pela própria ICERD nos artigos 11 a 13. Enquanto os EAU sustentavam, em suas alegações escritas, que ambos os requisitos deveriam ser cumulativamente exauridos, o Catar retorquia que é suficiente que um ou outro seja cumprido para autorizar o recurso à Corte. Mas, visto que a CIJ posteriormente declarou que as condições são alternativas (a Corte o fez na decisão de admissibilidade do caso Ucrânia contra Rússia), os EAU ajustaram seu argumento em sua manifestação oral, e esse ponto deixou de ser controverso.


Restou, desse modo, uma segunda controvérsia, relacionada a saber se, uma vez iniciado o procedimento dos artigos 11 a 13, o Estado demandante deve aguardar a conclusão ou a paralisação desse mecanismo antes de recorrer à CIJ ou se o artigo 22 autoriza a existência de procedimentos simultâneos.


Para os EAU, as demandas perante o Comitê CERD e a CIJ são materialmente idênticas, pois se referem à mesma disputa e têm os mesmos conteúdo, origem e extensão. Assim, os EAU argumentam que ambos os Estados se comprometeram previamente a participar de boa-fé do procedimento iniciado perante o Comitê e que, portanto, esse processo deve seguir seu curso. O fato de as condições de negociação e de recurso ao Comitê serem alternativas, prosseguem os EAU, não opera nas circunstâncias específicas do caso, visto que o próprio Estado do Catar invocou o procedimento perante o Comitê. Aguardar a solução do procedimento respeitaria, ademais, o caráter subsidiário da jurisdição da Corte e privilegiaria as tentativas de solução amigável. Segundo os EAU, trata-se simplesmente do estrito cumprimento do artigo 22 da ICERD.


O Estado do Catar, por sua vez, se apoia fortemente no caráter alternativo das precondições procedimentais desse artigo. O Catar argumenta que o “sentido comum” da expressão não deixa dúvidas: se são “alternativas”, basta que uma das precondições seja esgotada; é irrelevante se outra delas ainda está em curso. Como, segundo o Catar, a condição de negociação foi cumprida, estaria garantido o cumprimento do artigo 22 e, consequentemente, o caso seria prontamente admissível.


Mesmo assim, o Catar oferece dois argumentos adicionais. Por um lado, cita precedentes da CIJ e de sua antecessora (a Corte Permanente de Justiça Internacional) que teriam admitido a existência de procedimentos internacionais paralelos, como a disputa entre Estados Unidos e Irã conhecida como o “Caso dos Reféns” (1980). E, por outro, argumenta que os procedimentos perante o Comitê CERD e a CIJ são fundamentalmente distintos: enquanto a natureza do procedimento perante o Comitê é conciliatória e recomendatória, aquela do caso perante a CIJ é legal e cogente.


Foto: Frank Van Beek/ICJ.


Catar v. EAU: avaliações e perspectivas para o caso

Em relação à primeira exceção preliminar, parece improvável que a Corte declare o caso inadmissível. Afinal, os argumentos dos EAU a esse respeito vão ao cerne do mérito da disputa perante a CIJ: se os atos do Estado constituíram ou não discriminação racial em desfavor dos cataris. No momento de analisar a jurisdição da Corte, como decidido em Ucrânia vs. Rússia, não é necessário definir se os atos constituem de fato discriminação racial ou se determinadas ações são cobertas pelos artigos 1.1, 1.2 ou 1.3 da Convenção (par. 94). Essas são questões de mérito. Na etapa de exceções preliminares, basta certificar-se de que as medidas contestadas “entram” (fall within) nas previsões da Convenção e de que essas medidas “são capazes de ter um efeito adverso no gozo de certos direitos protegidos” pela Convenção (par. 97). A Corte deve entender que, para fins de admissibilidade, essas questões são respondidas na afirmativa.


Quanto à segunda exceção, a situação é mais incerta. Nos casos anteriores envolvendo a ICERD (além do já mencionado caso Ucrânia vs. Rússia, também o caso Geórgia vs. Rússia), a questão não surgiu porque o procedimento dos artigos 11 a 13 da Convenção não foi iniciado por nenhuma das partes. No caso entre Catar e EAU, se está pacificado que os requisitos do artigo 22 são alternativos, a Corte tem duas opções: (i) permitir que os procedimentos perante o Comitê CERD e a CIJ corram em paralelo ou (ii) estabelecer que, uma vez provocado o Comitê por opção de uma das partes, esse procedimento deve ser levado a termo antes que se possa recorrer à Corte. Aqui está a melhor chance para os EAU (ou, inversamente, o maior risco aos olhos do Catar) de que o caso seja inadmitido.

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