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Direito das mulheres no Tribunal Africano dos Direitos Humanos e dos Povos

Por Amanda Amorim da Costa e Thalia Pasetto*

Fonte: African Union/Participants in the 8th African Union Gender Pre-Summit on 2016 African Year of Human Rights


O presente artigo visa apresentar o caso Association pour le Progrès et la défense des droits de femmes maliennes (APDF) and the Institute for Human Rights and Development in Africa (IHRDA) v. República do Mali (046/2016), julgado em 2018 pelo Tribunal Africano de Direitos Humanos e dos Povos e que trata sobre o direito das mulheres e das crianças. Para além do mérito do caso, ele também se destaca por apresentar aspectos inovadores acerca do funcionamento do Tribunal, notadamente a participação de Organizações Não Governamentais (ONGs) como partes requerentes e a condenação por violações de instrumentos internacionais exteriores ao sistema africano. Diante de tais características, também serão traçadas breves comparações com o sistema Europeu e o Interamericano de direitos humanos.


Quadro fático


De maneira sintética, o caso aborda violações, por parte da República do Mali, dos direitos das mulheres e das crianças previstos em instrumentos internacionais ratificados pelo país, sendo que tais violações seriam decorrentes da adoção de um novo Código de Família.

Em 2009, a Assembleia Nacional do Mali adotou a proposta de Lei nº 2011-087 que pretendia estabelecer um reformulado Código de Pessoas e de Família (Código de Família). Desde 1998, o país tentava reformar seu aparato legal para torná-lo condizente com o Direito Internacional dos Direitos Humanos e a proposta do novo Código de Família se inseria nesse contexto.


Após uma drástica releitura e atendendo às manifestações religiosas, no entanto, a proposta de Lei foi fortemente remodelada e acabou sendo promulgada, em 2011, num modelo tradicionalista baseado em preceitos islâmicos opostos ao objetivo inicial. Entre suas previsões, o novo Código estabelecia efeitos jurídicos ao casamento religioso da mesma forma que ao civil, determinava como 16 anos a idade mínima para mulheres contraírem casamento e em questões de herança, discriminava por sexo e pelos/as filhos/as nascidos/as ou não da relação do casamento.


Organizações não governamentais perante o Tribunal Africano


Em julho de 2016, duas ONGs de direitos humanos levaram ao Tribunal o pedido de condenação da República do Mali pela adoção do novo Código.


Uma das ONGs, a Associação pelo Progresso e a Defesa dos Direitos das Mulheres Malinesas (APDF, sigla em inglês), atua a nível nacional, propriamente em Mali, enquanto a outra, o Instituto de Direitos Humanos e Desenvolvimento na África (IHRDA, sigla em inglês), é pan-africana e tem abrangência continental. Ambas possuem status de observadores perante a Comissão Africana dos Direitos Humanos e dos Povos.


Foto: Arquivo/Tribunal Africano de Direitos Humanos e dos Povos


A propositura da ação pelas ONGs só foi admitida, no entanto, pois os requisitos específicos foram cumpridos. Primeiramente, o Estado acusado, nesse caso, a República do Mali, já havia expressamente aceito a possibilidade de ONGs e indivíduos proporem demandas perante o Tribunal quando ratificou a Declaração em que reconhece tal capacidade da Corte, conforme os art. 34(6) [1] e 5(3) [2] do Protocolo da Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos relativo à Criação de um Tribunal Africano dos Direitos Humanos e dos Povos. Dos 30 Estados membros do Tribunal Africano, cerca de 10 já ratificaram alguma vez declarações nesse sentido [3]. A Ruanda, em 2013, e a Tanzânia, em 2019, revogaram suas declarações, restando 8 que ainda podem diretamente receber acusações de indivíduos ou ONGs.


Para além da expressa Declaração do Estado afetado, a redação do art. 5(3) exige que as ONGs requerentes tenham status de observadores perante a Comissão. Dessa forma, sem a Declaração ratificada pelo Estado ou se as ONGs não tivessem o status de observadores na Comissão, o caso não poderia ter sido proposto nos moldes como aconteceu.

A relação de ONGs com os tribunais regionais de proteção dos direitos humanos se dá de maneira diferenciada em cada um dos continentes.


No Sistema Interamericano de Direitos Humanos, conforme já explicado em artigo anterior do Cosmopolita, somente Estados Partes da Convenção Americana sobre Direitos Humanos e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) podem propor demandas ante a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH). Já perante a Comissão, no entanto, qualquer pessoa ou grupo de pessoas, assim como entidade não-governamental legalmente reconhecida em um ou mais Estados membros da OEA, pode apresentar denúncia ou queixa, que então pode ser remetida à Corte IDH. Assim, é possível que uma ONG apresente demanda à Comissão, que, se entender cabível, remeterá o caso à Corte.


Já ante o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, atualmente é possível que ONGs apliquem diretamente ao Tribunal (Companhia marítima da República Islamita do Irão c. Turquia, e Unédic c. França). No sistema europeu, no entanto, é necessário que o/a requerente (indivíduo, grupo de indivíduos ou ONGs) seja pessoalmente a vítima do direito violado, não sendo possível arguir sobre a ilegalidade genérica de alguma lei ou medida, como ocorreu no caso aqui tratado, por exemplo.


Dessa maneira, se existente a Declaração expressa do Estado prevista no art. 34(6) da Convenção, o Tribunal Africano se torna o mais acessível entre os sistemas regionais para a propositura de ações por organizações não governamentais.


O direito aplicável ao Tribunal Africano


Conforme já abordado pelo Observatório Cosmopolita, foi conferida ao Tribunal Africano dos Direitos Humanos e dos Povos, através do Protocolo Relativo aos Estatutos do Tribunal de Justiça e Direitos Humanos, a possibilidade de evocar fontes externas ao Sistema Africano dos Direitos Humanos e dos Povos, a fim de fundamentar as demandas perante o Tribunal, conforme dispõe o artigo 31 do referido Protocolo: “No exercício das suas funções, o Tribunal deverá lidar com o seguinte: [...] b) Os tratados internacionais, gerais ou especiais, aos quais os Estados em litígio são Partes”.


Desta forma, se evidencia a possibilidade do uso de diferentes tratados internacionais, sejam eles gerais ou específicos. No caso em análise, as ONGs proponentes, a APDF e o IHRDA, fazendo uso da citada alínea b, fundamentaram o caso em violações de direitos humanos positivados nos seguintes documentos: i) no Protocolo à Carta Africana Dos Direitos Humanos e dos Povos Sobre os Direitos das Mulheres na África (conhecido como Protocolo de Maputo); ii) na Carta Africana dos Direitos e Bem-Estar da Criança (ACRWC), e; iii) na Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW).


Evocado o uso de tais documentos, o primeiro adotado no âmbito da União Africana (UA), o segundo sob a égide da antiga Organização da Unidade Africana (OUA) e o terceiro adotado na esfera das Nações Unidas, resta verificar se o Estado envolvido no litígio, no caso a República do Mali, é parte, ou seja, tenha ratificado tais tratados internacionais.


No caso em espécie, não existe dúvida acerca da ratificação pelo Estado-réu de tais documentos, de modo que – como veremos adiante – toda a fundamentação concernente ao mérito da demanda é baseada nesses instrumentos, sem menção à Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos.


Não obstante, o uso de tratados internacionais adotados nas mais diversas esferas dos sistemas regionais, sub-regionais e internacionais também merece ser analisado. O exercício dessa prerrogativa presente no Tribunal Africano não ocorre de forma tão ampla em outras jurisdições regionais de direitos humanos.

No caso da Corte IDH, essa jurisdição possui competência para reconhecer as violações de direito presente na Convenção Interamericana de Direitos Humanos (CADH), conforme estabelecido no artigo 33 da referida convenção.


Além disso, tal competência material se estende às violações dos direitos previstos no Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Ainda, a Corte Interamericana possui competência com relação a outros documentos de direitos humanos, mas todos adotados em âmbito americano.


Da mesma forma, no Tribunal Europeu de Direitos Humanos, a competência material se dá com base na Convenção Europeia de Direitos do Homem e seus protocolos [4], sob pena de não recebimento da demanda pelo Tribunal, conforme o artigo 35, §3 da Convenção.

Assim, a fundamentação em tratados internacionais adotados sob a esfera das Nações Unidas, como no caso em análise, fica restrito ao tribunal do continente africano, que, nesse aspecto, vai mais além que seus homólogos europeu e interamericano.

Mérito do caso


Uma vez reconhecida a jurisdição da Corte e a admissibilidade do pedido, no mérito, os requerimentos versaram sobre quatro questões principais: idade mínima para o casamento, consentimento para o casamento, direito à herança para mulheres e crianças, e a eliminação de tradições e costumes prejudiciais para mulheres e crianças.


Os argumentos apresentados pela defesa podem ser divididos em dois tipos. O primeiro foi a tese de force majeure (força maior), arguindo que as manifestações sociais e religiosas no país forçaram a adoção do novo Código de Família. Por outro lado, no segundo, a República do Mali afirmou que a nova lei reflete os aspectos sociais, culturais e religiosos de sua população.


Nenhum dos argumentos foi acolhido pelo Tribunal em sua decisão. A Corte Africana reconheceu que as práticas tradicionais que autorizam o tratamento discriminatório à mulher ou às crianças violam os standards internacionais de direitos humanos, com os quais o Mali havia, inclusive, se comprometido quando se tornou parte dos referidos tratados.


Além disso, o Tribunal reconheceu que a República do Mali possuía a obrigação positiva de adotar mecanismos que eliminem a discriminação contra as mulheres, em decorrência específica da ratificação da CEDAW. Assim, as violações foram reconhecidas como inadmissíveis.


Por fim, o Mali foi condenado pela violação do Protocolo de Maputo, da CEDAW, e da ACRWC. Além disso, foi determinada a alteração do Código de Família e a adoção de medidas que ponham fim às violações estabelecidas.


O direito das mulheres em outras Cortes regionais de direitos humanos


O Tribunal Europeu de Direitos do Homem


O homólogo europeu, pelo fato de ser o tribunal regional mais antigo, é o que conta com o maior número de julgamentos sobre a temática, tendo desenvolvido um sistema de proteção jurisprudencial, o que se dá de duas formas complementares: a primeira, se baseando no princípio da não discriminação, ou seja, privilegiando o aspecto universal dos demais direitos presentes na Convenção Europeia dos Direitos do Homem (artigos 3 e 26) e, a segunda, reconhecendo que as mulheres pertencem a um grupo específico que necessita de medidas particulares de proteção, elaborando, portanto, jurisprudências que se aplicam especificamente às mulheres, como a que reconhece o direito à livre disposição de seus corpos.


O que se pode observar é que a proteção aos direitos das mulheres no continente europeu se dá apenas com base em seus documentos regionais, ou seja, na impossibilidade de violar tais obrigações, enquanto o caso africano foi mais além, reconhecendo a existência de um obrigação de eliminar as formas de discriminação decorrentes de compromissos internacionais assumidos pela República do Mali.


Sistema Interamericano de Direitos Humanos


As violações de direitos das mulheres levados à Comissão e à Corte Interamericana no geral incorrem da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher, mais conhecida como Convenção de Belém do Pará, como ocorreu no notório caso Maria da Penha Maia Fernandes do Brasil, que, após o relatório de mérito da Comissão, nos resultou em uma legislação nacional com medidas específicas voltadas para violência doméstica, a Lei Maria da Penha nº 11.340. Outro caso bastante referenciado sobre violência de gênero, dessa vez da própria Corte, é o Campo Algodoeiro vs. México, que, pela primeira vez, conceitua e utiliza o conceito de feminicídio (homicídio de mulheres por razões de gênero) e estabelece o dever do Estado de prevenir, investigar e punir devidamente crimes de violência de gênero.


Observações finais


Em relação aos procedimentos do Tribunal Africano, o caso se mostra um exemplo da possibilidade de propositura de ações por organizações não governamentais e da competência material do Tribunal para interpretar e aplicar instrumentos internacionais exteriores ao sistema africano de direitos humanos. Em comparação, evidenciam-se as diferenças de tais institutos em relação ao Tribunal Europeu e à Corte IDH, que julgam apenas documentos provenientes do respectivo âmbito regional e aceitam propositura de demandas por ONGs de maneira diversa.


No mérito do caso, a decisão reforça a obrigação dos Estados de efetivamente adequar suas legislações nacionais às obrigações firmadas em nível internacional e se mostra como um elemento fortificante dos direitos das mulheres e das crianças, principalmente na importância da igualdade de gênero nas relações jurídicas provenientes do direito de família e das sucessões.


*Amanda Amorim da Costa e Thalia Pasetto são membros do Observatório Cosmopolita do Tribunal Africano dos Direitos Humanos e dos Povos.


Referências


[1] 34(6). At the time of the ratification of this Protocol or any time thereafter, the State shall make a declaration accepting the competence of the Court to receive cases under article 5 (3) of this Protocol. The Court shall not receive any petition under article 5 (3) involving a State Party which has not made such a declaration; [2] 5(3). The Court may entitle relevant Non Governmental Organizations (NGOs) with observer status before the Commission, and individuals to institute cases directly before it, in accordance with article 34 (6) of this Protocol; [3] Para mais informações: https://www.ejiltalk.org/individual-and-ngo-access-to-the-african-court-on-human-and-peoples-rights-the-latest-blow-from-tanzania/; [4] Conforme: <https://www.echr.coe.int/Documents/COURtalks_Inad_Talk_ENG.PDF> ou <https://www.echr.coe.int/Documents/COURtalks_Inad_Talk_SPA.PDF>.

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