Por Ana Paula Cardoso Almeida e Nahomi Helena de Santana*
Foto: Freedom House - Freedom on the Net 2021.
A Comissão Interamericana de Direitos Humanos - CIDH, em fevereiro de 2021, ao expressar preocupação no que tange à garantia da liberdade de expressão na internet, delegou à sua Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão (RELE) a responsabilidade de desenvolver uma forma dialógica de fomentar discussões democráticas amplas e com plenas garantias para discordâncias nos espaços virtuais, sem a corrosão do sistema democrático mediante violência e propagação de discursos de ódio.
O trabalho da Relatoria na última década tem evidenciado a necessidade de um aprofundamento nesse tema. Em 2013, na gestão de Catalina Botero Marino, a RELE publicou o documento “Liberdade de expressão e internet”, que destacou questões como: princípios orientadores (acesso, pluralismo, não discriminação e privacidade); restrições legislativas; responsabilizações ulteriores; neutralidade da rede; intermediários; filtragem e bloqueio; cibersegurança e outros. Ou seja, as diretrizes e ponderações sobre a consolidação e análise da liberdade de expressão no espaço virtual sempre estiveram na pauta da Comissão Interamericana de Direitos Humanos.
Desde então as fronteiras entre facetas da liberdade de expressão, como liberdade de imprensa e acadêmica, e a internet foram se dissipando. O trabalho jornalístico adentrou a esfera online e se expandiu com suas possibilidades de vídeos, entrevistas, podcasts e outros instrumentos, e também a academia usufrui desse espaço na transmissão de eventos online, publicação de opiniões e estudos ou na manifestação individual e coletiva de seus integrantes, como docentes, pesquisadoras e pesquisadores, instituições e grupos.
Essa expansão possui consequências. Como se extrai do texto de Elder Maia Goltzman, surgem fenômenos como a desinformação, hora nomeados de fake news, que demandam uma resposta internacional articulada. Contudo, em face da discordância das nações sobre o tema, ela não se apresenta num futuro próximo. No meio tempo, organizações como a Relatoria Especial para Liberdade de Expressão das Nações Unidas e a OEA divulgam recomendações de enfrentamento e precaução, em especial para períodos eleitorais.
A preocupação se evidencia na gestão de Edison Lanza, quando a Relatoria publicou dois documentos fundamentais: o Guia para garantir a liberdade de expressão frente à desinformação deliberada em contextos eleitorais (2019) e o “Estândares para uma Internet livre, aberta e inclusiva” (2017).
O Guia apresenta uma descrição e análise da desinformação em contextos eleitorais pela perspectiva do SIDH, com recomendações específicas para o Poder Legislativo, Judiciário, Executivo e autoridades eleitorais dos Estados, bem como para empresas intermediárias, partidos políticos, empresas de telecomunicações, meios de comunicação, jornalistas, verificadores, empresas que realizam comércio de dados para fins publicitários, universidades e centros de investigação.
O segundo, por sua vez, destacou os princípios norteadores, fundamentos do direito de acesso à informação e do direito à privacidade e proteção de dados pessoais. O material analisou o conteúdo desses direitos, normas e padrões internacionais por um olhar compatível com o sistema interamericano.
Contudo, as manifestações da RELE nos últimos anos evidenciam uma grande preocupação com a segurança de jornalistas e investigações de seus assassinatos, a deterioração do debate público, desinformação, discursos de ódio, alfabetização digital e moderação de conteúdo.
Sob esse contexto, a resposta da Relatoria veio em 26 de março de 2021, com a organização da Audiência Pública “Moderação do conteúdo da Internet e liberdade de expressão nas Américas”. No âmbito do 179º período de sessões, em formato virtual, a audiência contou com a exposição de diversas organizações como o Observatório Latino-Americano de Regulação, Mídia e Convergência (Observacom); a Rede em Defesa dos Direitos Digitais (R3D), do México; o Centro de Estudos sobre Liberdade de Expressão e Acesso à Informação (CELE), da Argentina e o Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (OHCHR).
Logo no início, a presidente da Comissão Interamericana de Direitos Humanos Antonia Urrejola salienta que a liberdade de expressão na internet tem passado por um ponto de inflexão que afeta todos os Estados da América, seus processos eleitorais e o bem estar das instituições. Em face disso, a audiência se faz um espaço necessário de participação dos Estados, da sociedade civil, dos meios de comunicação e demais atores interessados.
Ao fim, o relator especial para a liberdade de expressão Pedro Vaca enfatizou a importância da audiência como um marco para o diálogo interamericano sobre liberdade de expressão que, como exposto, enfrentará temas complexos.
Foto: Comissão Interamericana de Direitos Humanos.
Dessa maneira, pensando em impulsionar a liberdade de expressão nos meios digitais, fiscalizar possíveis limitações a esses espaços e abordar eventuais relações entre discursos preconceituosos nos espaços online e ações violentas contra grupos específicos, a Relatoria lançou neste 20 de setembro o “Diálogo de Las Américas”, espécie de diálogo interamericano “aberto e multissetorial” concentrado em três eixos temáticos, a saber, (i) a deterioração do debate público; (ii) a alfabetização digital para desenvolvimento de habilidades cívicas e (iii) a compatibilização de políticas de Moderação de Conteúdos com os padrões de direitos humanos.
Ressalta-se aqui que houve iniciativas de outras instituições também a respeito da temática, como o “Roadmap for Digital Cooperation”, desenvolvido pela Secretaria-Geral da ONU, com contribuições de Estados Membros, do setor privado, da sociedade civil, da comunidade técnica e de outros grupos de interessados, e disponibilizado em junho de 2020, no contexto do início da pandemia de COVID-19, em que pessoas de todo o mundo estavam sendo inseridas no home office, ao mesmo tempo em que um número expressivo sequer tinham acesso à internet. De acordo com os dados do documento, apenas 19% dos indivíduos de países menos desenvolvidos usaram a internet em 2019.
O relatório do “Roteiro para Cooperação Digital” da ONU foi criado a partir do relatório final “The Age of Digital Interdependence”, desenvolvido também pela Secretaria-Geral da ONU em junho 2019, o qual reunia cinco recomendações à comunidade internacional que versavam sobre maneiras de otimizar o uso das tecnologias digitais e minimizar os riscos. As recomendações foram criadas por meio de deliberações ocorridas em um Painel de Alto Nível em Cooperação Digital (High-level Panel on Digital Cooperation) no ano de 2018.
A partir da contribuição de especialistas que foram consultados sobre formas de dar seguimento às recomendações, restaram previstas as seguintes ações para a cooperação digital: (i) alcançar conectividade universal e acessível até 2030; (ii) promover bens públicos digitais para criar um mundo mais igualitário; (iii) garantir a inclusão digital a todos, incluindo os mais vulneráveis; (iv) fortalecer a capacitação digital; (v) assegurar a proteção dos direitos humanos na era digital; (vi) apoiar a cooperação mundial em matéria de inteligência artificial; (vii) promover a confiança e segurança no ambiente digital, e (viii) construir uma arquitetura mais eficaz para a cooperação digital.
Com o fim de implementar o Roteiro, além de facilitar o diálogo sobre tecnologias emergentes, o Secretário-Geral da ONU ficou responsável por nomear um Enviado de Tecnologia (Envoy o technology), cuja função seria aconselhar a alta administração das Nações Unidas sobre as principais tendências em tecnologia para orientar a abordagem estratégica da Organização a essas questões. Desde fevereiro de 2021, A Sra. Maria-Francesca Spatolisano é a Oficial Responsável do Escritório do Enviado de Tecnologia.
No que tange ao “Diálogo de las Américas”, este passou por um período de preparação entre os meses de maio e agosto de 2021, e restou estabelecido que se desenvolverá em 4 fases, todas abertas à participação pública. As três primeiras fases serão realizadas com o fim de delimitar as temáticas e definir a agenda de ações a serem efetuadas na sequência. Já a quarta fase ocorrerá no início de 2022, a partir da constituição de um grupo multissetorial de trabalho ad hoc formado pela RELE com o intuito de analisar os resultados das fases precedentes e elaborar um plano de ação a ser sugerido aos países-membros e aos órgãos da OEA.
O site oficial do Diálogo está disponível, com apresentação, notícias, páginas de cada uma das três vertentes de trabalho, apresentação das fases e objetivos do projeto, bem como exposição das instituições parceiras, termos e políticas próprias. Em vídeo inicial, o relator Pedro Vacas ressaltou o perigo que certos discursos em redes sociais e similares representam em termos de violência e qualidade da democracia. São elementos que ratificam a necessidade de iniciativas como essa, atentas à manutenção e fiscalização dos valores, princípios e normas de direitos humanos no enfrentamento aos desafios que constantemente se apresentam.
Importa ressaltar, ainda, a premente necessidade de desenvolvimento dessa forma de diálogo no Brasil. Diversas ações e discursos do presidente da República, especialmente os que são disseminados pelo ambiente digital, têm ido de encontro aos princípios norteadores das iniciativas promovidas pelas instituições internacionais supramencionadas, ceifando gradualmente direitos de minorias e desvalorizando a democracia, inclusive com a repercussão de discursos de ódio alicerçados pelas manifestações do presidente.
Verifica-se grande dificuldade em se formalizar um diálogo sobre a temática com o país atualmente, haja vista que o Presidente Jair Bolsonaro tampouco mantém uma comunicação com outros órgãos do país, como o Legislativo. Vê-se pelas manobras realizadas o intuito de governar sem a necessidade do apoio do Congresso Nacional, expedindo um grande número de medidas provisórias - as quais produzem efeitos jurídicos imediatos e seguem em vigor até que sejam apreciadas pelas Casas Legislativas - a respeito de variados temas desde o início de seu mandato, em 2018, e governando, de igual maneira, por meio de decretos presidenciais.
Por outro lado, a questão dos espaços digitais e a disseminação da desinformação são temáticas sob análise do Congresso Nacional no PL nº 2630/2020, conhecido como PL das Fake News. O projeto de lei, aprovado pelo plenário do Senado e sob análise e julgamento da Câmara dos Deputados, prevê a transparência de redes sociais e de serviços de mensagens privadas, principalmente a respeito da responsabilidade dos provedores pelo combate à desinformação. Ainda, estabelece normas referentes ao aumento da transparência na internet, à transparência em relação a conteúdos patrocinados e à atuação do poder público. No entanto, há que se considerar os problemas que norteiam a PL e sua aprovação pelo Congresso, como a quantidade de projetos de lei apensados à PL 2630/20 e as medidas polêmicas apresentadas, como a proposta de “rastreabilidade” em aplicativos de mensagem instantânea como o WhatsApp.
O Brasil se encontra em uma situação delicada em que o Poder Executivo obstrui constantemente canais de diálogo sobre liberdade de expressão, controle e diretrizes, demandando do Legislativo, Judiciário e da sociedade civil posturas contundentes em audiências públicas, protestos, campanhas de conscientização e notas oficiais. Os freios e contrapesos têm se articulado para tentar amarrar as bordas do Estado Democrático de Direito, garantir a efetivação dos direitos humanos e impedir um isolamento total do país.
*Nahomi Helena de Santana é advogada, graduada em Direito pela UFPR e integrante do NESIDH-UFPR, pós graduanda em Direito Eleitoral pela PUC-Minas e cursando especialização em Direitos Humanos na Universidade da Integração Latino-Americana. Pesquisadora de direitos humanos, democracia, liberdade de expressão e antidiscriminação. Ana Paula Cardoso Almeida é graduanda em direito pela Universidade Federal do Paraná. Integrante do NESIDH desde 2020.
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