*Por João Sallani.
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Passada a chamada Super Tuesday, quando quatorze estados norte-americanos realizaram simultaneamente suas primárias para a escolha do candidato do Partido Democrata a desafiar Donald Trump na eleição presidencial de 2020, é visível o encaminhamento da disputa pela nomeação democrata entre o centrista ex-vice presidente, Joe Biden, e o senador de Vermont autodeclarado socialista democrático, Bernie Sanders – embora a deputada Tulsi Gabbard, até o fechamento deste artigo, ainda permaneça formalmente na disputa.
Favorito no início da corrida, Sanders vê-se seriamente ameaçado pelo impressionante ressurgimento de Joe Biden, agora apoiado pelos ex-concorrentes centristas Pete Buttigieg, Amy Klobuchar e Michael Bloomberg, e tracionado por robustas vitórias na Carolina do Sul e em dez dos quatorze estados da Super Tuesday, seguidas por seu evidente predomínio nas votações do dia 10 de março, quando muitos especularam até mesmo a saída de Sanders da corrida à candidatura presidencial.
Para surpresa de muitos, pesquisas indicam que até mesmo a desistência de Elizabeth Warren, identificada com o setor mais progressista do Partido Democrata, vem trazendo maior benefício à candidatura de Biden do que à de Sanders. O caminho de Biden à nomeação à candidatura presidencial democrata parece cada vez mais bem pavimentado.
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Neste domingo, 15 de março, ocorrerá o primeiro debate face a face entre os dois candidatos. Apesar de analistas já considerarem quase certa a indicação de Biden à candidatura à presidência dos EUA em 2020, Sanders tentará uma última cartada para convencer o eleitorado de sua capacidade de eleger-se presidente em uma corrida contra Donald Trump e provar que seu movimento não se restringe a nichos da ala mais radical do Partido Democrata.
O candidato escolhido pelo Partido Democrata para disputa da corrida presidencial, quem quer que seja, terá de lidar, caso eleito, com as inevitáveis consequências do grave desarranjo institucional internacional promovido pela política divisiva de Donald Trump – que não apenas desdenhou das instituições e mecanismos internacionais que os próprios EUA ajudaram a construir no pós-guerra, mas também alienou antigos aliados e parceiros estratégicos do país norte-americano.
Iniciamos aqui uma série de análises do Cosmopolita acerca das consequências e perspectivas internacionais das eleições americanas de 2020. Conheça neste artigo os mais relevantes posicionamentos de Joe Biden, hoje principal candidato do Partido Democrata à disputa da presidência dos Estados Unidos.
Joe Biden – centrismo e volta às tradições da política externa norte-americana
Joseph Robinette Biden Jr., nascido em Scranton, Pensilvânia, em 20 de novembro de 1942, é o primeiro de quatro filhos de uma família de classe média, eleito senador pelo estado de Delaware aos 27 anos, em 1973, e reeleito até 2009 por 6 mandatos consecutivos.
Em 2008, após uma pré-candidatura à presidência dos EUA em 2008 na qual não foi capaz de fazer frente às candidaturas de Hillary Clinton e Barack Obama, Biden acabou abrindo mão de seu pleito, assumindo a posição de candidato à vice-presidência dos Estados Unidos na chapa de Obama.
Em seus anos na Casa Branca (2009-2017), Biden destacou-se pela demonstração de experiência em política externa, angariada em seu longo período no Senado, sobretudo em sua atuação na questão do Iraque – visitando o país uma vez a cada dois meses durante o primeiro mandato – e, mais especificamente, pelo êxito da retirada das tropas americanas do país em 2011, encerrando um conflito que se estendia por mais de 8 anos.
A notória atuação de Biden nas questões do Oriente Médio que marcaram a era Obama envolve também êxitos e controvérsias, sobretudo na participação norte-americana no combate ao Estado Islâmico, e no fomento e armamento de rebeldes sírios em oposição ao presidente Bashar al-Assad, em conflito que se estende até os dias de hoje.
Aos 77 anos, Joe Biden é pré-candidato à Presidência dos EUA pelo Partido Democrata, apresentando extensa plataforma de política externa que indica, sobretudo, o empenho à “volta à normalidade” da política externa norte-americana e global.
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Embora o candidato afirme diferenças em relação aos presidentes democratas que o precedem, a essência do ideal de Biden parece indicar uma volta às diretrizes norte-americanas que marcaram os governos de Bill Clinton e Barack Obama, sobretudo no que diz respeito ao ativismo internacional norte-americano na defesa enfática e ativa dos Direitos Humanos pelo globo.
O triunfo da democracia e do liberalismo sobre o fascismo e a autocracia criaram o mundo livre. Mas essa disputa não define apenas nosso passado. Ela definirá também nosso futuro - Joe Biden, Foreign Affairs, Março de 2020.
Segundo Biden, suas prioridades em termos de política externa, caso eleito, dirão respeito ao enfrentamento do crescimento do autoritarismo, à reafirmação da credibilidade internacional dos EUA e sua posição enquanto líder global, sobretudo em relação aos desafios da mudança climática, e ao restabelecimento das alianças e compromissos do país norte-americano com seus tradicionais aliados.
Para o ex-vice presidente, cabe aos EUA se reposicionarem no cenário internacional como líderes firmes e estáveis da comunidade global.
Para trazer de volta a internacionalização dos valores democráticos por meio da política externa dos EUA, Biden afirma que, caso eleito, convocará já no primeiro ano de seu mandato uma “Cúpula para a Democracia”, reunindo nações que compartilhem valores democráticos comuns, além de representantes do setor privado e organizações da sociedade civil, a fim de forjar uma agenda internacional em prol de tais ideais disposta ao enfrentamento de governos contrários ao ideal democrático.
O ímpeto de Biden em recolocar os Estados Unidos da América na posição de líderes globais visa não somente a propagação dos valores norte-americanos, mas também a retomada das rédeas da formulação normativa internacional.
A abordagem de Biden quanto às regras do comércio internacional, por exemplo, demonstra a retomada da liderança norte-americana como chave da grande estratégia para contenção da ascensão da China e seu capitalismo de Estado iliberal. Retornar os EUA à posição de formuladores de normas e perspectivas internacionais seria, sobretudo, a mais eficiente forma de voltar a adaptar as regras do jogo internacional aos anseios norte-americanos.
Ao afirmar não levantar a bandeira do livre comércio, tão popular nos anos da presidência de Bill Clinton, mas sim a do justo comércio, Biden parece acenar aos fatores tão alardeados por Donald Trump para justificar sua política comercial rigorosamente protecionista, embora proponha resolvê-las não pelo isolacionismo comercial, mas sim pela regulação por meio de regras aplicáveis a todos os participantes do comércio internacional. Isto é, a proposta de política externa de Biden aponta mais para a volta à formulação de regras genéricas de estabilização por meio de instituições internacionais do que à imprevisibilidade do “cada um por si” defendido e praticado por Trump desde 2016.
Em um mundo em profunda interdependência econômica e em crescente dissociação política, Biden propõe uma política externa na qual economia, política e direitos humanos são indissociáveis.
Em artigo publicado na revista Foreign Affairs, Joe Biden afirma que a melhor estratégia de enfrentamento da ascensão chinesa se dará a partir de uma coalizão entre os EUA e seus aliados que enfrente a China quanto a seus comportamentos abusivos, mas esteja disposta a cooperar com o país asiático onde existirem interesses convergentes – como em relação à mudança climática, à não-proliferação nuclear e à saúde global.
A coisa errada a se fazer é enterrar nossas cabeças na areia e dizer "sem mais acordos de comércio". Países farão comércio com ou sem os EUA. A questão é, quem escrever as normas que regulam o comércio? Quem vai garantir a proteção de seus trabalhadores, do meio-ambiente, a transparência e os salários da classe média? Os EUA, e não a China, deveriam liderar tais esforços - Joe Biden, Foreign Affairs, em Março de 2020.
O ativismo internacional propagado por Biden, no entanto, tende a trazer de volta não somente as virtudes inerentes da propagação global dos Direitos Humanos, mas também antigos e perniciosos dilemas que perseguiram seus antecessores na presidência dos Estados Unidos.
Em entrevista ao jornal The New York Times, Joe Biden, como Obama, afirmou o dever moral dos EUA em responder a eventuais abusos envolvendo o uso de armas químicas, posicionando-se a favor do uso da força em intervenções humanitárias, ainda que ressaltando a importância da comunidade internacional para a tomada de tais ações.
O real alcance do ativismo internacional de um possível governo Biden é ainda pouco claro, sobretudo em relação ao respeito às limitações impostas pela comunidade internacional ao uso da força – controvérsia central das políticas externas dos últimos presidentes norte-americanos, sejam eles republicanos ou democratas.
Biden alinha-se à tradicional doutrina político-jurídica norte-americana favorável à utilização da força contra ataques externos iminentes (modalidade de emprego da força conhecida como “preemptiva” ou “preventiva”). Conforme informado ao New York Times, Biden afirma-se disposto a empregar tais formas antecipatórias do uso da força quando em jogo interesses vitais dos EUA, e quando identificados objetivos claros e alcançáveis.
A licitude de tais modalidades do emprego da força nas relações internacionais, no entanto, conforme já analisado no Cosmopolita, é bastante discutida no campo do Direito Internacional, não tendo sequer a Corte Internacional de Justiça se posicionado solidamente sobre o tema.
A despeito da posição majoritária norte-americana posicionar-se tradicionalmente em linha com o defendido em suas falas recentes, não havendo surpresa quanto ao posicionamento do ex-vice-presidente, pesa contra Biden o histórico de seu voto favorável à invasão do Iraque em 2003 – do qual diz se arrepender profundamente.
Foto: Josef Sywenky/Redux/ Newsletter
Para além de operações envolvendo o uso da força, o ativismo internacional proposto por Biden tende a desenvolver-se por meio do fomento e apoio não militar a grupos dispostos ao oposicionismo a governos autoritários, e à defesa dos Direitos Humanos e da responsabilização de seus Estados. Em tal ponto, a posição de Biden, acompanhada pelo establishment democrata não se distancia tanto daquela adotada por Donald Trump em relação à crise venezuelana em 2019.
A real disposição de Biden em engajar, de fato, os EUA na promoção dos valores dos Direitos Humanos e da democracia liberal pelo globo encontra fortes indicativos em suas falas contra Estados autoritários, ainda que estreitamente ligados por laços econômicos e políticos aos EUA.
Evidência disso pode ser encontrada na posição de Biden quanto às tensas relações entre a China e Hong Kong e às reiteradas denúncias de graves violações dos direitos humanos dos uigures pelo Estado Chinês. Nas palavras de Biden, a defesa dos Direitos Humanos em seu mandato, caso eleito, será a prioridade máxima de sua política externa, uma vez que “this is not time for business as usual”.
Da mesma forma, Biden não se sente constrangido ao criticar dura e abertamente a Arábia Saudita por seu regime brutalmente opressivo, apesar de sua tradicional posição de aliada dos interesses dos EUA no Oriente Médio.
Ao afirmar veementemente sua intenção de resgatar a condição dos EUA enquanto parceiro estável e confiável para fins de cooperação internacional, Joe Biden declara, por exemplo, que, caso eleito, pretende levar os EUA de volta ao Acordo Nuclear com o Irã (JCPOA), desde que o país persa também se mostre disposto a seguir os termos firmados em 2015, ainda na Administração Obama.
Biden também afirma a OTAN como a mais importante aliança militar da história, capaz de manter a paz e a estabilidade internacionais pelos últimos 70 anos. Segundo o ex-vice-presidente, a OTAN é a base sobre a qual os EUA podem exercitar suas responsabilidades ao redor do globo.
Nesse ponto, Biden não poupa críticas à política externa de Donald Trump. Na visão do ex-vice-presidente, as alianças dos EUA são baseadas, sobretudo, em valores e visão de mundo compartilhados.
"Eu apoio fortemente a OTAN. Acredito que a OTAN é a mais significativa aliança militar na história do mundo. E creio que tem sido a base sobre a qual pudemos manter a paz e a estabilidade pelos últimos 70 anos. E é o coração de nossa segurança coletiva. É a base sobre a qual os Estados Unidos são aptos a exercer suas responsabilidades em outras partes do mundo também" - Joe Biden, em discurso na Munich Security Conference, em 2019.
As constantes pressões de Donald Trump sobre os aliados norte-americanos da OTAN para que aumentem seus gastos de participação na Organização, ameaçando até mesmo retirar seu país do grupo caso não haja distribuição mais igualitária do custeio de suas operações, é absolutamente rechaçada por Biden, que considera que ligar a segurança oferecida pelos EUA a seus aliados a necessários pagamentos e aportes financeiros seria a institucionalização de uma forma de extorsão internacional.
Em dura crítica à atuação do governo de Donald Trump no conflito da Síria, Biden chegou a afirmar que o abandono norte-americano a grupos curdos ao retirar as tropas norte-americanas da Síria e deixá-los à esmagadora força da Turquia foi o ato mais vergonhoso de um presidente norte-americano na história moderna, em termos de política externa.
O centrismo tem chance em tempos de polarização?
O projeto apresentado por Joe Biden na corrida pela indicação presidencial do Partido Democrata propõe, sobretudo, a “volta à normalidade” da política externa norte-americana, focada na preservação e na utilização dos organismos e mecanismos internacionais que os próprios EUA ajudaram a construir no pós-guerra, pelas quais Donald Trump não nutriu qualquer apreço.
À esquerda e à direita de Biden, tanto Sanders, nas primárias, quanto Trump, na eleição presidencial, oferecem a promessa de mudança - seja ela progressista ou reacionária - em detrimento da preservação de instituições e conceitos associados ao establishment norte-americano e global.
A capacidade de engajamento eleitoral de uma plataforma moderada em tempos de extrema polarização política, no entanto, é o ponto a ser observado até novembro, mês da eleição presidencial norte-americana. Até lá, acompanhe os pontos essenciais da corrida pela Casa Branca e seus desdobramentos na Política e no Direito internacionais aqui no Cosmopolita.
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