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Irã v. EUA na CIJ: Entenda a disputa relacionada ao programa nuclear iraniano

*Por Giulia Romay, Lucas Nogueira Nunes e Theo Scudellari.

Foto: UN Photo/ICJ/Frank van Beek.

Nas últimas semanas, a Corte Internacional de Justiça (CIJ) deu andamento às atividades do caso sobre Alegadas Violações ao Tratado de Amizade, Relações Econômicas e Direitos Consulares de 1955 (Tratado de Amizade) entre Irã e Estados Unidos da América (EUA). Ocorreram por videoconferência as audiências sobre exceções preliminares, durante os dias 14, 16, 18 e 21 de setembro. A Corte ouviu os argumentos dos EUA, que apresentaram as exceções preliminares em agosto de 2019, e do Irã, que pede pelo indeferimento destas. No momento, a Corte inicia deliberação e, em breve, deverá publicar sua decisão.

Confira a seguir o histórico procedimental do caso e os destaques das alegações das partes durante a última audiência.


Foto: UN Photo/ICJ/Frank van Beek.


A demanda do Irã


A demanda que originou a disputa foi apresentada pelo Irã, em julho de 2018, com base em alegadas violações dos EUA ao Tratado de Amizade vigente entre os dois Estados. Estas alegações se refletem no recente confronto geopolítico entre Irã e EUA; e dizem respeito à decisão do presidente Donald Trump, de maio de 2018 de retirar os EUA do Plano de Ação Conjunto Global sobre o programa nuclear do Irã (PACG) e restabelecer sanções ao Iran.


O acordo do PACG havia sido firmado em 2015 entre Alemanha, China, EUA, França, Irã, Reino Unido, Rússia e a União Europeia. Buscava limitar as atividades iranianas com urânio enriquecido e, em contrapartida, suavizar sanções impostas ao Estado. Após a declaração do governo norte-americano, os EUA anunciaram retomar um conjunto de sanções e medidas restritivas ao Irã e a indivíduos e companhias iranianos, em especial, a respeito de transações financeiras e relações comerciais de importação e exportação.


O Irã alegou uma série de violações ao Tratado de Amizade causadas por essas medidas, dentre as quais pode-se elencar: (a) violação à não-discriminação de nacionais presente no Artigo IV (1) e (2), em razão das determinações de término dos contratos firmados por nacionais norte-americanos com nacionais iranianos; (b) violação à proibição de restrições de compra e venda e meios de pagamento, presente nos Artigos V (1) e VII (1), a respeito das sanções financeiras e restrições a trocas entre dólares e riais iranianos; (c) violação à liberdade comercial presente nos Artigos VIII (1) e (2), IX (2) e (3), e X (1), pelas revogações de licenças e aplicações de sanções em relações comerciais de importação e exportação com nacionais iranianos.


Em maio de 2019, o Memorial do Irã reafirmou e expandiu esses argumentos, demonstrando impactos práticos dessas medidas e reiterando os pedidos finais. Além de pedir compensação pecuniária pelas alegadas violações, o Irã solicitou que a Corte determinasse aos EUA o cessamento das sanções em vigor, tal como a garantia de não-imposição de futuras sanções.

As medidas provisórias solicitadas


Na mesma data em que acionou a CIJ, em 16 de julho de 2018, o Irã também alegou haver risco iminente de prejuízo irreparável aos direitos de seus nacionais sob o Tratado de Amizade, solicitando à Corte a indicação de medidas provisórias. Entre 27 e 30 de agosto de 2018, a Corte sediou as audiências sobre o pedido de indicação de medidas provisórias. Na ocasião, o Irã reiterou os pedidos finais anteriormente apresentados e os EUA solicitaram que a Corte os rejeitasse.


O teor das medidas provisórias solicitadas pelo Irã compreendia que os EUA: (a) tomassem as providências necessárias para suspender as sanções de maio de 2018 e se abster de impor demais sanções anunciadas; (b) permitissem a plena execução de transações já licenciadas, dentre outras atividades, na venda ou arrendamento de aeronaves de passageiros e de peças e equipamentos de aeronaves; (c) cessassem declarações e ações de dissuasão a indivíduos e companhias norte-americanos e não norte-americanos quanto a envolvimento comercial com o Irã e nacionais iranianos; (d) comunicassem à Corte, dentro de 3 meses, as providências tomadas; e (e) se abstivessem de quaisquer outras medidas prejudiciais aos direitos do Irã e seus nacionais nos termos do Tratado de Amizade.

Decisão da CIJ sobre as medidas provisórias


Em outubro de 2018, a Corte se reuniu e deliberou acerca do pedido de medidas provisórias, realizando uma análise prima facie de jurisdição, e avaliando o direito alegado pelo Irã e os possíveis riscos que a espera pelo julgamento final pudesse acarretar.

Análise de jurisdição prima facie

Para aferir a jurisdição prima facie, a Corte levou em consideração o Artigo 36, parágrafo 1 do Estatuto e o Artigo XXI do Tratado de Amizade, suscitados pelo irã no requerimento inicial.


O Artigo XXI condiciona a jurisdição da Corte à existência de um litígio acerca da interpretação ou aplicação do Tratado de Amizade. A esse respeito, a Corte observou que o Tratado possui disposições sobre liberdade comercial entre EUA e Irã, além de disposições específicas de vedação a restrições de importação e exportação de produtos e a restrições de meios de pagamento e transferência de fundos entre ambos os Estados. Desse modo, a Corte concluiu que as sanções do governo norte-americano entrariam no escopo de certos direitos e obrigações resguardados pelo Tratado. Como tampouco foi solucionada previamente por via diplomática, a disputa foi prima facie enquadrada no Artigo XXI.

Plausibilidade do direito

As exceções à jurisdição da Corte presentes no Artigo XX, parágrafo 1 do Tratado, suscitadas pelos EUA em audiência, também foram superadas pela Corte. Apesar de algumas das sanções contestadas dizerem respeito a atividades nucleares e à segurança nacional dos EUA, tal como elencado no Artigo XX (1), a Corte entendeu que outros direitos alegados pelo Irã (como aqueles relativos a comércio e aviação civil) não se enquadrariam nas exceções e, portanto, sua proteção seria plausível.


Ademais, também entendeu que os alegados direitos, cuja proteção o Irã busca, possuíam vínculo com as medidas provisórias solicitadas.

Risco de dano irreparável na demora

Sobre a urgência da indicação de medidas provisórias, a Corte avaliou que algumas das sanções adotadas pelos EUA teriam o potencial de colocar em risco a segurança da aviação civil, na medida em que impediam companhias aéreas iranianas de adquirir dos EUA peças e equipamentos necessários. Avaliou também que as restrições ao comércio de bens relatvos a necessidades humanitárias, como alimentos e medicamentos, poderiam ter grave impacto sobre a saúde e a vida de indivíduos no território do Irã.


Considerando, ainda, que as sansões estavam em vigor e produzindo efeitos no momento da deliberação e que era iminente a implementação de um conjunto adicional de sanções, a Corte entendeu haver urgência na indicação de medidas provisorias, nos termos de seu Estatuto.

Decisão da Corte

Desse modo, a Corte emitiu a ordem de 3 de outubro de 2018 para indicar as seguintes medidas provisórias. (a) Os EUA deveriam remover impedimentos à exportação ao território iraniano de: i. medicamentos e equipamentos médicos; ii. alimentos e comodities agrícolas; e iii. peças, equipamentos e serviços necessários à segurança da aviação civil. (b) Os EUA deveriam garantir a concessão de licenças e autorizações e não restringir pagamentos e outras transferências, na medida que fossem necessários à realização das atividades elencadas em (a). (c) Ambas as partes deveriam se abster de ações que pudessem agravar ou estender a disputa.


Foto: UN Photo/ICJ/Frank van Beek.


As exceções preliminares opostas pelos EUA


Em 23 de agosto de 2019, os EUA apresentaram suas exceções preliminares à demanda iraniana, com base no artigo 79 (1) do Regulamento da Corte. A petição consiste em duas exceções quanto à jurisdição da Corte, uma exceção quanto à admissibilidade do caso, e duas exceções de caráter geral.


O argumento principal é que o verdadeiro objeto da ação apresentada pelo Irã não seria o Tratado de Amizade de 1955, mas sim as sanções reimpostas pelos EUA em 8 de maio de 2018 – reflexo da saída do PACG. Em caráter alternativo, os EUA alegam que as sanções reimpostas em maio de 2018 não fariam parte do escopo material do Tratado, de acordo com o artigo XX (1), itens (b) e (d). Por último, os EUA argumentam que a vasta maioria das sanções reimpostas destinam-se a terceiros, logo estariam fora do escopo bilateral do Tratado de Amizade com o Irã.

Principal exceção

Segundo a peça inicial iraniana, a jurisdição da Corte seria fundamentada no artigo XXI (2) do Tratado de Amizade, que autoriza às partes submeter à CIJ disputas referentes à interpretação e aplicação do Tratado. Os EUA, no entanto, consideram que o real objeto da disputa não seria a aplicação do Tratado de Amizade, mas sim obter o levantamento das sanções de 8 de maio de 2018, com base normativa no PACG. Este acordo, por sua vez, é instrumento normativo completamente distinto do Tratado de Amizade. Logo seria impossível aplicar a cláusula compromissória do artigo XXI (2) do Tratado para trazer disputas referentes ao PACG perante a Corte, por força do conhecido caráter consensual da jurisdição internacional.


Como anteriormente afirmado pela CIJ no caso de Jurisdição de Pescas (Espanha x Canadá), quando a definição do objeto litigioso é alvo de disputa entre as partes, é obrigação da Corte defini-lo de maneira isolada e objetiva, com base nas evidências apresentadas. Ao fazê-lo, a Corte deveria, neste caso, declinar o exercício da jurisdição.

Para os EUA, a discussão sobre interpretação do Tratado de Amizade seria apenas uma fachada para conferir efeito vinculante ao PACG – um instrumento claramente redigido pelas partes como acordo político, com obrigações voluntárias. A obrigatoriedade do levantamento das sanções reimpostas pelos EUA, como consequência de eventual deferimento pela Corte do pedido principal iraniano, tornaria o PACG obrigatório para os EUA e voluntário para o Irã. Em suma, o Irã estaria buscando, por meios processuais, a realização de obrigações inexistentes no campo material, configurando assim um abuso do direito de ação. Por essas razões, também, a Corte deveria igualmente declinar o exercício da jurisdição e declarar o caso inadmissível.

Exceções alternativas

Caso a Corte não considere que o real objeto da demanda seja o PACG, os EUA levantam outras exceções de caráter alternativo. O artigo XX (1), itens (b) e (d) dita que o Tratado de Amizade não é aplicável às medidas relacionadas a materiais nucleares (b) e à proteção da segurança nacional das partes (d). Esse seria exatamente o escopo material e a razão por trás da integralidade das sanções reimpostas pelos EUA, conforme ampla documentação posta à disposição da Corte. Embora a aplicação do artigo XX (1) exija uma análise material do caso, seria compatível com a análise da fase preliminar por razões de justiça, celeridade e economia processual – visto que a Corte já possuiria todas as informações necessárias para proferir a decisão.


A última exceção feita pela pelos EUA argumenta que o Tratado de Amizade não deveria incidir sobre a maioria das sanções de 8 de maio de 2018, por serem sanções impostas a terceiros. A vasta maioria das sanções que o Irã busca reverter perante a Corte dizem respeito às transações econômicas entre Irã e seus nacionais e outros Estados e seus respectivos nacionais. Os EUA buscam demonstrar que o Tratado de Amizade tem caráter claramente bilateral, buscando proteger certas atividades comerciais entre o Irã e os EUA. Seria, assim, impossível aplicá-lo fora dessa relação contratual bilateralmente estabelecida.

Hipóteses de acolhimento

O acolhimento pela CIJ de diferentes exceções preliminares levaria também a diferentes efeitos processuais. As duas exceções quanto à jurisdição da Corte (referentes ao real objeto da demanda) e as duas exceções de caráter geral (artigo XX (1), itens (b) e (d) do Tratado de Amizade) levariam ao término do processo ainda na fase preliminar, sem resolução do mérito. Já a exceção de admissibilidade (referente ao caráter bilateral do Tratado de Amizade) levaria à inadmissibilidade parcial da demanda, somente com relação às sanções a terceiros, possibilitando a análise do mérito quanto à legalidade das sanções puramente bilaterais.



Foto: UN Photo/ICJ/Frank van Beek.

As alegações do Irã para rejeição das exceções preliminares


Ao iniciar a sustentação, o Irã apresentou seu argumento central de que a base das demandas apontadas estaria no Tratado de Amizade, o qual indica a CIJ para a resolução de disputas entre as partes. Dessa forma, as sanções de maio de 2018 seriam apenas um elemento de violação, que estaria diretamente vinculado aos dispositivos do Tratado de 1955.


Acerca desse ponto, o Irã rebateu o argumento norte-americano de que haveria ‘abuso de processo’ no uso do Tratado como veículo para recorrer à Corte de decisões políticas. O Irã alega que os EUA teriam se utilizado da retórica de que o que se constitui como um abuso de processo não é suscetível a uma definição abrangente em abstrato. Alega também que os EUA teriam endossado a mesma lógica, ao argumentar que a Corte deveria observar as condições de um abuso de processo a partir da perspectiva de casos extremos; já que as reivindicações iranianas não se enquadrariam nesse escopo extremo em nenhuma das circunstâncias. Em conexão, o Irã menciona dois casos (Atividades Militares e Paramilitares e Certos Ativos Iranianos) em que os EUA também recorreram ao argumento de abuso de processo e a CIJ o considerou improcedente.


Em resposta ao argumento dos EUA de que as consequências do presente caso poderiam ressoar nas relações políticas entre os países, o Irã alega que esta seria uma questão completamente plausível, e mesmo comum, em casos como este frequentemente analisados pela Corte. Sobre a possibilidade de recair em análise da possibilidade de um julgamento de mérito, o irã alega que a matéria estaria em conformidade com o Tratado; de modo que não haveria fundamento nas exceções apresentadas pela defesa dos EUA e a Corte poderia conduzir o julgamento naturalmente.


Um quarto ponto dos EUA rebatido pela defesa do Irã é o de que as consequências desse julgamento afetariam e entrariam em conflito com a própria função judicial. A defesa iraniana apontou que os argumentos norte-americanos seriam vagos e não definiriam o escopo do que efetivamente ameaçaria a integridade da função judicial, fazendo com que a Corte devesse desvincular-se de um determinado caso. O Irã apontou que a Corte só poderia deixar de julgar um caso quando houvesse situação em que fosse claramente observada uma incapacidade ou impossibilidade de julgamento, pautando-se nas características de fato do caso em questão e tornando impossível exercer algum dos pilares centrais da execução do direito: a análise dos fatos e a busca pela verdade e justiça. Apontou que a Corte nunca rejeitou um caso em que pudesse haver julgamentos distintos a partir da apresentação do caso em outro tribunal, mesmo que a partir de outro escopo.

Pedidos reafirmados na conclusão e perspectivas


Ao final das sustentações, os EUA reafirmaram a solicitação de que a Corte que reconheça as exceções preliminares e rejeite as demandas do Irã. Segundo os EUA, estariam fora da jurisdição da CIJ e seriam inadmissíveis e contrárias ao Artigo XX (1), itens (b) e (d) do Tratado de Amizade. Além disso, os EUA também solicitaram a rejeição, por ausência de jurisdição, de quaisquer demandas sob os dispositivos do Tratado de Amizade baseadas em relação a Estados terceiros. O Irã, por sua vez, reafirmou o pedido de rejeição das exceções preliminares, solicitando que a Corte reconheça ter jurisdição no caso e julgue procedentes as demandas.

Vale ressaltar que ambos os Estados não têm levado a cabo a determinação provisória da Corte sobre se absterem de ações que pudessem agravar a disputa. Apesar dos esforços dos demais Estados signatários do PACG em permitir a manutenção de relações comerciais entre companhias europeias e iranianas, o Irã não deixou de retaliar a política dos EUA. Ainda em novembro de 2019, o governo iraniano anunciou que voltaria a enriquecer urânio. Mais recentemente, em janeiro de 2020, após os EUA terem liderado a operação que culminou na morte do general iraniano Qasem Soleimani, o Irã gerou preocupações ao anunciar sua retirada do PACG e a retomada irrestrita das atividades de enriquecimento de urânio. Não obstante, o Irã afirmou que continuaria a cooperar com a Agência Internacional de Energia Atômica e que poderia rever suas medidas caso os EUA removessem as sanções em vigor.


A reta final do ano de 2020 promete novos desdobramentos à disputa entre iranianos e norte-americanos. Seja no âmbito político ou no campo jurídico, o desenrolar dessa história você acompanha no Cosmopolita e em nosso Observatório da Corte Internacional de Justiça.


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