*Por Daniel Cerqueira.
Publicado em inglês e espanhol no Blog da Due Process of Law Foundation.
Foto: UN Department of Economic and Social Affairs/Indigenous People.
O impacto da pandemia do Covid-19 para os povos indígenas e o contexto de violência e esbulho territorial nos obriga a pensar soluções desde os mais variados âmbitos jurídicos e políticos. 2020 tem sido um ano particularmente trágico para os povos indígenas em todo o planeta e, particularmente, na região amazônica. Ali, a expansão do Covid-19 ocorre de forma paralela à ação oportunista de madeireiros ilegais, garimpeiros, grileiros e governos dispostos a flexibilizar a concessão de megaprojetos extrativos sob o argumento de que é necessário promover investimentos nesta região em resposta à crise econômica provocada pela pandemia.
Dita realidade vem sendo descrita por juristas, organizações da sociedade civil e pelas próprias comunidades atingidas, por meio de expressões como genocídio ou etnocídio, usualmente utilizadas em contextos de limpeza étnica por parte de regimes repressivos ou no bojo de conflitos armados. Por outro lado, a devastação ambiental em marcha tem sido descrita frequentemente como “ecocídio”. Até agosto deste ano, mais de 70 mil indígenas tinham sido infectados pelo COVID-19 nas Américas, dos quais 23 mil se encontravam na bacia amazônica e 15 mil no Brasil.
No Brasil, a tragédia enfrentada pelos povos indígenas é consequência direta da aquiescência do governo à destruição de reservas naturais e indígenas e do desmantelamento do pouco que resta de institucionalidade socioambiental.
Foto: Leo Otero/Midia Ninja.
Na maioria dos países, houve uma redução na emissão de gases de efeito estufa, devido à diminuição da atividade económica. No Brasil, no entanto, espera-se um aumento de 20% nas emissões de CO2 em comparação com o ano passado, provocado essencialmente pelo avanço das invasões ilegais de terras indígenas e do incremento de até 35% no desmatamento da Amazônia no curso deste ano. Apesar desta situação de calamidade, o Ministro do Meio Ambiente afirmou recentemente, durante uma reunião ministerial, que a comoção ao redor da crise do Coronavírus no Brasil é uma oportunidade para acelerar a flexibilização das leis ambientais.
Para vários especialistas em Direito Internacional, as denúncias recentes contra Jair Bolsonaro perante a Promotoria do Tribunal Penal Internacional (TPI) por ecocídio e genocídio possuem uma motivação mais política que jurídica, sendo improvável que o mandatário brasileiro enfrente um inquérito preliminar no TPI. Apesar desta controvérsia, a crise humanitária enfrentada pelos povos indígenas requer, inevitavelmente, o emprego de todas as ferramentas políticas e jurídicas disponíveis, incluindo as previstas no Direito Internacional.
A livre determinação nos órgãos políticos da ONU
As expressões “livre determinação” e “autodeterminação” remontam ao discurso iluminista que inspirou as revoluções norte-americana e francesa no final do século XVIII, bem como os movimentos de independência na América Latina e Caribe, no começo do século XIX. Em sua acepção embrionária, tais expressões definiam a reivindicação de um povo de autogovernar-se e derrocar regimes coloniais e monarquias absolutas. Neste contexto, conforme escreve o historiados inglês Eric Hobsbawn, o indivíduo-cidadão passou a ser o ponto de referência e as características étnicas e culturais não seriam devidamente consideradas nas constituições dos Estados-nações nascidos das revoluções liberais.
Após a Primeira Guerra Mundial, a despeito de os arranjos territoriais do leste europeu previstos no Tratado de Versalhes terem se fundamentado, em parte, na autodeterminação de minorias nacionais europeias, os instrumentos constitutivos da Liga das Nações não chegaram a consagrar a livre determinação como um princípio fundacional da relação entre os Estados.
Sua definição como um postulado político e não como um direito coletivo foi ditada na famosa decisão do Comitê de Juristas da Sociedade das Nações ao redor da demanda da população das Ilhas Aaland - na qual 95% fala o idioma sueco - de tornar-se independente da Finlândia e incorporar-se à Suécia. Dentre seus aspectos mais relevantes, tal decisão destacou que "embora o princípio de que os povos devem ser capazes de governar-se ocupa um lugar importante no pensamento político moderno, principalmente após a guerra mundial, deve-se notar que não está inscrito no Pacto da Liga das Nações. E a consagração deste princípio em um certo número de tratados internacionais não basta para que seja considerado uma das regras positivas do Direito das Gentes".
Adotada em 1945, a Carta das Nações Unidas estabelece em seu artigo primeiro o princípio da livre determinação como pilar da nova ordem internacional, estendendo dito princípio para além do contexto europeu e aplicando-lhe aos territórios coloniais não-autônomos (vide seus capítulos XI, XII e XIII). No entanto, a Carta não define a livre determinação como um direito coletivo em si. Dita acepção seria assumida pela comunidade internacional a partir da década de sessenta, sob o impulso dos processos de descolonização.
A progressiva emancipação colonial na África e Ásia levou a Assembleia Geral da ONU a adotar, em dezembro de 1960, as resoluções 1514 (XV) e 1541 (XV), as quais reconhecem a autonomia dos povos coloniais de expressar sua vontade livremente. Tais resoluções inauguram o reconhecimento internacional dos povos, e não dos territórios independentes ou em processo de emancipação, como titulares do direito à livre determinação.
Dita posição foi ratificada pela Corte Internacional de Justiça na Opinião Consultiva ditada em 1975 no Caso Relativo à Saara Ocidental. Titulada “Declaração sobre a Concessão de Independência aos Países e Povos Coloniais”, a Resolução 1514 (XV) define a livre determinação como o direito dos povos do mundo “a determinar livremente sua condição política e perseguir livremente seu desenvolvimento econômico, social e cultural".
Foto: Rick Bajornas/UN Photo.
Desde a adoção das citadas resoluções, prevaleceu a posição conhecida como “doutrina da água salgada” ou “da água azul”, segundo a qual o reconhecimento da livre determinação não era aplicável às minorias étnicas no interior dos Estados que já haviam alcançado a independência. Desta maneira, a comunidade internacional decidiu, num primeiro momento, limitar o reconhecimento à livre determinação aos processos de descolonização pelos povos de enclaves ultramarinos, mas não aos povos indígenas e/ou minorias étnicas e nacionais dentro dos Estados independentes.
A livre determinação no Direito Internacional dos Direitos Humanos
O artigo 1º comum ao Pacto de Direitos Civis e Políticos (PIDCP) e ao Pacto de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC) consagra expressamente o direito à livre determinação, embora a interpretação inicial dos respectivos comitês tenha sido influenciada pela exclusão de tal direito às minorias étnicas presentes nos Estados independentes. Cabe destacar, entretanto, que antes mesmo do reconhecimento do referido princípio nos foros intergovernamentais, vários povos indígenas e organizações da sociedade civil vinham reivindicando seu reconhecimento no âmbito interno e internacional.
Após décadas de mobilizações, o direito à livre determinação foi progressivamente reconhecido aos povos indígenas, a partir do quadro normativo e jurisprudencial do direito internacional dos direitos humanos. Dito reconhecimento ganhou um maior impulso no contexto da superação do paradigma integracionista que vigorou por vários anos nos ordenamentos constitucionais, sobretudo na América Latina. A partir da década de 1980, vários países do continente adotaram constituições que incorporam o paradigma multicultural na abordagem da relação entre povos indígenas e Estados.
No âmbito internacional, a superação do paradigma integracionista se materializou com a adoção da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), em junho de 1989, sendo fortalecida com a Declaração da ONU sobre os Direitos dos Povos Indígenas de 2007, e com uma vasta jurisprudência dos órgãos supranacionais de direitos humanos.
A Convenção 169 da OIT internacionalizou o compromisso de preservação das culturas indígenas, reconhecendo-lhes o poder de decidir autonomamente sobre suas prioridades de desenvolvimento e de participar diretamente de toda e qualquer decisão estatal capaz de afetar-lhes. Dito compromisso seria concretado mediante o direito à consulta e consentimento prévio, livre e informado (CPLI). Embora não estabeleça expressamente o direito à autodeterminação, a Convenção consagra a autonomia dos povos indígenas para determinar livremente seus modos de vida e suas prioridades de desenvolvimento econômico, social e cultural.
O reconhecimento expresso da livre determinação em favor dos povos indígenas em um instrumento internacional ocorreria somente em 2007, por meio da Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, especificamente em seus artigos terceiro e quarto. Tal esforço foi seguido pela Declaração Americana dos Direitos dos Povos Indígenas, aprovada pela Assembleia Geral da OEA em junho de 2016, cujos artigos III e XXI consagram o mesmo direito fundamental.
Foto: Assemblea General OEA - 15.06.2016.
Antes da adoção desses instrumentos, o Direito Internacional e o Direito Constitucional Comparado atribuíam múltiplos significados ao termo “livre determinação” que denotam, em geral, as seguintes situações: 1) processos de descolonização; 2) o direito de independência de um Estado soberano perante os demais (livre determinação externa); e 3) o direito dos povos de determinar livremente sua condição política e buscar seu próprio desenvolvimento dentro de um determinado Estado (livre determinação interna).
Em seu Comentário Geral nº 12 de 1984, o Comitê de Direitos Humanos enfatizou o aspecto externo desse direito. Posteriormente, em 1996, o Comitê para a Eliminação da Discriminação Racial esclareceu, no Comentário Geral nº 21, o aspecto interno da livre determinação, que implica o “direito de todos os povos realizarem seu desenvolvimento econômico, social e cultural sem interferência externa.” Por sua vez, o Comitê DESC também se pronunciou sobre o direito à autodeterminação previsto no Artigo 1 do PIDESC em favor dos povos indígenas.
O Sistema Interamericano de Direitos Humanos
O vínculo entre os direitos de propriedade coletiva e à CPLI com o princípio da livre determinação indígena foi recentemente reconhecido na doutrina da Comissão e na jurisprudência da Corte Interamericana (Corte IDH). A sentença da Corte no Caso do Povo Saramaka vs. Suriname, de 2007, é um marco nesse sentido. Ao se pronunciar sobre o direito à CPLI, a Corte destacou que este se deriva não apenas da Convenção 169 da OIT, que não foi ratificada pelo Suriname, sendo inerente à livre determinação indígena contida no art. 1 do PDCP.
No Caso do Povo Sarayaku v. Equador, de 2012, a Corte IDH foi ainda mais enfática ao se pronunciar sobre o vínculo entre os direitos territoriais indígenas e o direito à livre determinação. A sentença destaca que este vínculo é indissociável da identidade cultural dos povos indígenas e implica “a obrigação dos Estados de garantir que os povos indígenas sejam devidamente consultados sobre os assuntos que afetam ou possam afetar sua vida cultural e social, de acordo com seus valores, usos, costumes e formas de organização.” A Corte destacou que “a identidade cultural é um direito fundamental de caráter coletivo das comunidades indígenas, que deve ser respeitado em uma sociedade multicultural, pluralista e democrática”.
No Caso dos Povos Kaliña e Lokono v. Suriname, a Corte reiterou que o direito à propriedade coletiva dos povos indígenas deve ser interpretado à luz das obrigações previstas no artigo 1 do PIDESC e de outros instrumentos internacionais que protegem a livre determinação indígena.
A CIDH também se pronunciou sobre o direito à livre determinação por meio de relatórios temáticos, como o Relatório sobre Povos Indígenas em Isolamento Voluntário e Contato Inicial nas Américas, de 2013, o Relatório sobre Povos Indígenas, Comunidades Afro-descendentes e Indústrias Extrativas, de 2015 , e o Relatório sobre a Situação dos Povos Indígenas e Tribais da Panamazônia.
Apesar de os precedentes mencionados e da tendência recente da CIDH de abordar diferentes direitos dos povos indígenas com base no princípio da livre determinação, o Sistema Universal continua sendo a principal fonte de pronunciamentos sobre o assunto. Nesse sentido, espera-se que os órgãos do SIDH desenvolvam parâmetros mais específicos e ecoem as demandas das organizações indígenas, para que o vínculo com seus territórios e recursos naturais seja protegido no âmbito de sua autonomia e livre determinação.
A garantia de um mundo melhor
Apesar da tensão que ainda existe entre o direito à livre determinação e o princípio da integridade territorial dos Estados, o DIDH desenvolveu importantes normas no que diz respeito ao aspecto interno da livre determinação, com o fim de estender sua aplicação aos povos, comunidades indígenas e tradicionais no seio de seus Estados.
Foto: Marcello Casal Jr./Agência Brasil.
Esse aspecto se articula com outros princípios igualmente protegidos, como o autogoverno e a autonomia na organização indígena, por meio de seus próprios processos decisórios e instituições políticas. Nessa lógica, a livre determinação indígena tem sido amplamente reconhecida no direito internacional dos direitos humanos e no direito constitucional comparado, sendo necessário, em todo caso, continuar avançando na obtenção de novas normas e pronunciamentos que desenvolvam parâmetros mais claros de atuação estatal nesse âmbito.
Deve-se notar que a crise do Covid-19 é apenas o prelúdio de uma crise ambiental cujo desfecho tende a ser muito mais catastrófico, a menos que a comunidade internacional de Estados, empresas e, em geral, a humanidade assuma uma forma mais racional de utilização dos recursos naturais. Uma das maneiras de concretizar esse compromisso passa por respeitar a capacidade dos povos indígenas de administrar com autonomia seus territórios e recursos naturais.
Garantir o direito à livre determinação indígena implica preservar um modo de vida mais harmonioso com a natureza. Nesse sentido, o reconhecimento desse direito deve ser entendido como um imperativo não apenas para preservar a integridade física e cultural dos povos indígenas e comunidades tradicionais, mas como um compromisso para prevenir e mitigar os efeitos da crise climática e das diversas crises ambientais dos nossos tempos.
*Daniel Cerqueira é Diretor de Programas na Due Process of Law Foundation (DPLF). Tem mestrado em Direito Internacional pela Georgetown University e atualmente e conclui mestrado no Programa de Direitos Globais e Democracia Constitucional na Universitá degli Studi di Genova. É bacharel em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG).
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