Por Lucas Albuquerque Arnaud de Souza Lima*
Foto: Tomaz Silva / Agência Brasil
O mês de junho é celebrado em todo o mundo como o Mês do Orgulho LGBTI* em homenagem à Revolta de Stonewall, que teve início em 28 de junho de 1969 e que é considerado o marco inicial do movimento LGBTI. Nesse dia, frequentadores do bar Stonewall Inn, em Greenwich Village, Nova York, se rebelaram contra a polícia, que frequentemente invadia bares voltados ao público LGBTI na cidade, com o intuito de assediar, constranger e violentar física e moralmente os ali presentes.
Mais de cinco décadas depois, o movimento conquistou inúmeros avanços por meio de sua luta, mas infelizmente ainda há muito para ser reivindicado. Nesse contexto, o plano internacional tem sido um campo fértil de conquistas de direitos, apesar das inegáveis dificuldades que existem para que os seus avanços normativos e jurisprudenciais sejam plenamente efetivados no plano interno e passem a exercer efeitos concretos na vida das pessoas a quem se direcionam.
Este texto tem como objetivo abordar brevemente os avanços obtidos em relação aos direitos das pessoas LGBTI no continente americano por meio do Sistema Interamericano de Direitos Humanos (SIDH), refletindo sobre os resultados já conquistados e identificando pontos em que ainda é possível avançar, para que a plena igualdade fique cada vez mais próxima de se tornar uma realidade em nosso continente.
Breve histórico do Sistema Interamericano de Direitos Humanos
O SIDH é formado por instrumentos internacionais elaborados no âmbito da Organização dos Estados Americanos (OEA), dentre os quais os principais são a Carta da OEA, a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem (DADDH) e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (CADH, também conhecida como Pacto de San José da Costa Rica). Esses instrumentos, por sua vez, deram origem aos dois órgãos principais do Sistema: a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) e a Corte Interamericana de Direitos Humanos.
A CIDH foi criada pela OEA em 1959 e consiste em um órgão de natureza “quase-judicial”. Isso significa que embora o órgão analise e tome decisões em relação a petições individuais que alegam violações de direitos humanos, ela não emite sentenças judiciais em sentido estrito. Os pronunciamentos da CIDH têm, na realidade, um caráter recomendatório. Isso não significa, contudo, que os Estados podem simplesmente ignorar seus pronunciamentos. Há um entendimento consolidado tanto no plano internacional quanto no plano interno de que os Estados possuem o dever de levar em consideração as recomendações do órgão e buscar de boa-fé promover o cumprimento das mesmas.
Cabe destacar, ainda, que a CIDH atua com base em três pilares: a proteção, que envolve a análise de petições individuais e de solicitações de medidas de urgência; o monitoramento, que envolve a supervisão da situação dos direitos humanos em todos os países membros da OEA, com a produção de relatórios de países e temáticos, comunicados de imprensa, além da realização de audiências públicas, entre outras atividades; e a promoção, que inclui de forma geral diversas iniciativas de disseminação dos standards de proteção desenvolvidos no SIDH para funcionários públicos, profissionais de administração da justiça, estudantes, entre outros.
Foto: Corte Interamericana de derechos humanos
Já a Corte Interamericana de Direitos Humanos foi criada em 1969, pela CADH, que por sua vez só entrou em vigor em 1979. A Corte possui uma competência contenciosa, na qual, em linhas gerais, se pronuncia sobre casos enviados pela CIDH e profere sentenças, medidas provisórias, entre outras resoluções; e uma competência consultiva, na qual se pronuncia sobre questões formuladas pelos Estados e órgãos da OEA relativamente a tratados de direitos humanos aplicáveis no continente americano por meio de pareceres consultivos. A Corte já soma quatro décadas de funcionamento pleno, nos quais emitiu 402 sentenças em casos contenciosos, além de 25 pareceres consultivos, 645 resoluções de medidas provisórias, entre outros pronunciamentos.
No plano normativo, cabe destacar o trabalho da Assembleia Geral da OEA, que já adotou pelo menos 9 resoluções sobre os direitos das pessoas LGBTI, que podem ser consultadas na página da Relatoria sobre os Direitos das Pessoas LGBTI da CIDH. O ano de 2020, contudo, tornou-se paradigmático para a proteção dos direitos das pessoas LGBTI no âmbito do SIDH pois no dia 20 de fevereiro entrou em vigor a Convenção Interamericana Contra Toda Forma de Discriminação e Intolerância, o primeiro tratado regional americano que prevê expressamente a proteção contra discriminações baseadas em orientação sexual, identidade e expressão de gênero. Embora esse avanço deva ser celebrado, é preciso destacar que se passaram setes anos até que dois Estados (Uruguai e México) depositassem a sua ratificação do instrumento. Além disso, esses Estados não apresentaram declarações atribuindo à Corte Interamericana a competência em relação a todos os casos relativos à interpretação e aplicação da Convenção, o que representaria um maior grau de comprometimento com a mesma. Fica claro a importância, nesse contexto, de que o movimento LGBTI continue pressionando os órgãos governamentais para que ratifiquem o instrumento e comprometam-se com o mesmo no maior grau possível.
Contudo, a ausência, até este ano, de um instrumento que previsse expressamente a orientação sexual e a identidade e expressão de gênero como categorias protegidas contra tratamentos discriminatórios não impediu que os órgãos do SIDH se pronunciassem sobre a questão em uma série de documentos e decisões.
Os diversos caminhos para a proteção dos direitos das pessoas LGBTI no Sistema Interamericano de Direitos Humanos
Pretende-se aqui traçar o panorama mais completo possível dos pronunciamentos já realizados pela CIDH e pela Corte Interamericana em relação aos direitos das pessoas LGBTI. A busca por esses pronunciamentos iniciou-se com o acesso à página da Relatoria sobre os Direitos das Pessoas LGBTI da CIDH, que compila a maior parte do material que já se produziu no SIDH sobre a matéria. A página, contudo, não lista os pronunciamentos mais recentes e em alguns casos mostrou-se omissa mesmo em relação a alguns mais antigos. Desse modo, diante da ausência de um sistema de busca oficial para o levantamento desses documentos, a pesquisa foi realizada por meio do acesso à integra da versão em espanhol do maior número de pronunciamentos possíveis, com ênfase nos mais recentes, e por meio da busca pelas palavras-chave: “identidad de género”, “orientación sexual”, “intersexual” e “LGBTI”.
Embora seja provável que não tenham sido encontrados todos os pronunciamentos do SIDH sobre o tema, os resultados obtidos nos permitem traçar um panorama rico de como o Sistema vem lidando com essas violações de direitos.
Foto: Comisión Interamericana de derechos humanos
A atuação da Corte Interamericana de Direitos Humanos
Em primeiro lugar, quatro casos envolvendo pessoas LGBTI já foram objeto de sentenças por parte da Corte Interamericana de Direitos Humanos, todas determinando a responsabilização internacional do Estado pela violação do direito à igualdade e à não discriminação, entre outros, e o consequente dever de reparar tais violações. O fato de tais casos terem chegado ao estágio de sentença faz com que eles se tornem centrais para a proteção dos direitos das pessoas LGBTI no âmbito do Sistema, pois consolidam standards sobre a matéria que devem, de acordo com a jurisprudência da Corte, ser obrigatoriamente observados por todos os Estados-membros.
Diante da importância desses casos, considerou-se fundamental descrever de forma um pouco mais detalhada o conteúdo de cada uma das decisões, enquanto os demais casos serão mencionados de forma uma mais geral.
O Caso Atala Riffo y niñas Vs. Chile, de 2012 é considerado o leading case em relação à proteção dos direitos das pessoas LGBTI na Corte Interamericana e decorre do fato de a senhora Riffo ter perdido a guarda de suas filhas para o ex-marido após começar a viver com sua atual companheira. A Corte Interamericana considerou que os processos judiciais relativos à disputa de guarda foram marcados por inúmeros estereótipos em relação a pessoas homossexuais e determinou o pagamento de indenizações pecuniárias tanto à mãe quanto às filhas, além da promoção de medidas de caráter estrutural como a criação de cursos de capacitação para funcionários públicos relacionados à diversidade sexual e de gênero.
No caso Duque Vs. Colombia, de 2016, a vítima era companheiro de um funcionário público que faleceu devido a consequências da AIDS. A pensão em decorrência do falecimento foi negada, visto que segundo a legislação colombiana da época, as uniões estáveis entre pessoas do mesmo sexo não eram reconhecidas para fins de concessão de pensões. Mesmo com uma decisão da Corte Constitucional Colombiana, em 2007, revertendo esse entendimento, o Sr. Duque ainda não havia conseguido acesso à pensão até a data do julgamento do caso, de modo que a Corte Interamericana determinou o pagamento de indenização pecuniária e, ainda, que o trâmite da solicitação do Sr. Duque fosse considerado como prioritário. Em 12 de março deste ano, a Corte determinou que todas as medidas de reparação foram integralmente cumpridas e que o caso já poderia ser declarado como arquivado.
O caso Flor Freire Vs. Ecuador, de 2016, é representativo da discriminação sofrida por pessoas LGBTI em ambientes militares. Por mais que o Sr. Freire se reconheça como um homem heterossexual e cisgênero e negue as “acusações” às quais foi submetido em procedimento administrativo, ele sofreu baixa do exército por ter sido alegadamente visto em “situação de homossexualismo” com outro membro do exército, enquanto estava de serviço. Desse modo, a Corte Interamericana decidiu que a vítima, independente de sua orientação sexual, sofreu uma punição de caráter discriminatório, e determinou o pagamento de indenização pecuniária, a restituição de todos os direitos do Sr. Freire como militar e, ainda, a realização de cursos de capacitação para os membros das forças armadas sobre a proibição da discriminação por orientação sexual.
Por fim, o caso Azul Rojas Marín y otra Vs. Perú, de 2020, que na presente data é o caso mais recente decidido pela Corte Interamericana, representa a primeira vez em que a Corte proferiu sentença sobre uma situação de violência física contra pessoa LGBTI. A Sra. Marín, que atualmente identifica-se como mulher transgênero, mas que na época dos fatos identificava-se como homem cisgênero gay, foi detida arbitrariamente em 2008 sem que os policiais apresentassem qualquer justificativa além do fato de ela estar na rua em um horário considerado “muito tarde”. Durante a detenção, que não chegou a ser registrada oficialmente pela polícia, a vítima sofreu uma série de agressões verbais, por meio de insultos homofóbicos, e físicas, incluindo violência sexual. A Corte determinou a realização de medidas de caráter individual, como pagamento de indenização pecuniária e investigação dos fatos, assim como medidas estruturais, que incluem a criação de um protocolo para a investigação de casos envolvendo violência contra pessoas LGBTI, criação de cursos de capacitação sobre a temática, compilação de dados estatísticos sobre a violência motivada por orientação, identidade e expressão sexual, entre outras.
Cabe fazer menção, ainda, ao caso Ramírez Escobar y otros Vs. Guatemala, relativo à retirada de guarda de dois filhos de sua mãe por uma suposta incapacidade da mesma de promover os cuidados necessários às crianças. Em todos os momentos do caso, as autoridades públicas atuaram pautadas por estereótipos de gênero e isso fez com que outros familiares não fossem considerados para obter a guarda: o pai de uma das crianças, que mantinha boa relação com a mesma, sequer foi contatado antes da adoção de seu filho por um casal estrangeiro, já a possibilidade de a avó assumir a guarda foi desconsiderada com base em argumentos discriminatórios devido à sua orientação sexual. Embora a avó não fosse formalmente vítima do caso perante a Corte, foi destacado que essa discriminação impediu que as crianças permanecessem no seio familiar.
Foto: Corte IDH
Além desses casos, a Corte Interamericana adotou, ainda, em 2017, o Parecer Consultivo OC-24/17, relativo às obrigações estatais em relação à mudança de nome, à identidade de gênero e aos direitos derivados de um vínculo entre casais do mesmo sexo. Nesse tipo de parecer, a Corte promove a interpretação de dispositivos específicos de instrumentos internacionais, sem a vinculação com um caso concreto específico. Embora a Corte Interamericana considere que os pareceres consultivos integram o bloco de convencionalidade, o que na prática os dotaria da mesma eficácia que as sentenças proferidas em casos concretos, essa interpretação é questionada por inúmeros Estados, que consideram que os pareceres possuem uma natureza apenas recomendatória, visão mais consoante com uma acepção clássica do Direito Internacional.
De qualquer forma, o parecer em questão representou uma completa mudança de paradigma em relação à proteção das pessoas LGBTI no plano internacional ao determinar que a não regulamentação do casamento entre pessoas do mesmo sexo é uma violação de direitos humanos, assim como a criação de óbices para a alteração de registro de pessoas transgênero, incluindo a exigência de qualquer tipo de intervenção cirúrgica ou hormonal. Até então, os órgãos internacionais vinham se pronunciando no sentido de que essas questões estariam dentro de uma margem de apreciação, cabendo a cada Estado promover a sua regulamentação.
Independente das controvérsias sobre a sua obrigatoriedade, o parecer já foi citado como base para decisões históricas no plano interno, como por exemplo no RE 670422, julgado pelo Supremo Tribunal Federal do Brasil, em que se autorizou a alteração do registro civil de pessoa transgênero, diretamente pela via administrativa, independentemente da realização de procedimento cirúrgico de redesignação de sexo; e no Expediente 15-013971-0007-CO, da Corte Suprema de Justiça da Costa Rica, em que se determinou que a Assembleia Nacional modificasse a legislação vigente para permitir o casamento entre pessoas do mesmo sexo.
Em sede de medidas provisórias, decisões adotadas pela Corte em caráter de urgência, vem-se cada vez mais incluindo considerações sobre os direitos das pessoas LGBTI privadas de liberdade nos casos que tratam das condições de estabelecimentos prisionais, a maioria referentes ao Brasil. Foi possível identificar essa preocupação nas seguintes resoluções: Asunto de las Penitenciarías de Mendoza, de 26 de novembro de 2010; Asunto del Complejo Penitenciario de Curado, de 22 de maio de 2014; de 7 de outubro de 2015, de 23 de novembro de 2016, de 15 de novembro de 2017 e de 28 de novembro de 2018; Asuntos de La Unidad de Internación Socioeducativa, del Complejo Penitenciario de Curado, del Complejo Penitenciario de Pedrinhas, y del Instituto Penal Plácido de Sá Carvalho, de 13 de fevereiro de 2017; Asunto de La Unidad de Internación Socioeducativa, de 15 de novembro de 2017; e Asunto del Instituto Penal Plácido de Sá Carvalho, de 22 de novembro de 2018.
De modo geral, a Corte destaca em tais resoluções a importância da construção de celas exclusivas para pessoas LGBTI, além da realização de medidas que busquem reduzir ao máximo a discriminação e a violência sofridas por essas pessoas nos estabelecimentos prisionais.
Por fim, cabe ressaltar a publicação por parte da Corte do Cuadernillo de Jurisprudencia de la Corte Interamericana de Derechos Humanos Nº 19: Derechos de Las Personas LGTBI, no qual são compilados todos os standards sobre a matéria desenvolvidos pelo órgão até então.
Foto: Eduardo Anizelli/Folhapress
A atuação da Comissão Interamericana de Direitos Humanos
Como já mencionado, a Comissão atua com base em três pilares: proteção, monitoramento e proteção. Buscou-se abordar a atuação do órgão em relação aos direitos das pessoas LGBTI ao longo desses três pilares.
Em relação à sua atuação de proteção, é importante destacar que o procedimento perante a CIDH é consideravelmente complexo e não será abordado aqui em detalhes. Deve-se levar em consideração, pelo menos, que o órgão recebe petições individuais que podem ser admitidas ou não. Caso sejam admitidas, podem ser objeto da produção de um relatório de mérito, no qual a Comissão emite recomendações para a reparação das violações. Caso essas recomendações não sejam cumpridas e, observados determinados requisitos, os casos podem ser enviados à Corte Interamericana. Além disso, em qualquer momento desse procedimento, as partes podem chegar a um acordo de solução amistosa, ou, ainda, o caso pode ser arquivado por uma série de motivos, como por exemplo a falta de atividade da parte peticionária.
Apesar da já mencionada dificuldade de se realizar uma busca por documentos da CIDH que tratem de um tema específico, foi possível encontrar documentos que tratam da proteção dos direitos das pessoas LGBTI relativos a todas essas etapas de procedimento.
Em primeiro lugar, além dos casos já julgados pela Corte, que um dia passaram pela CIDH, encontrou-se dois casos já submetidos pelo órgão à Corte, mas que ainda não foram julgados por esta: o Caso 12.997 - Sandra Cecilia Pavez Pavez, Chile e o Caso Nº 13.051 - Vicky Hernández y família, Honduras. No primeiro, a Sra. Pavez foi impedida de continuar exercendo seu ofício de professora de ensino religioso com base em sua orientação sexual; já no segundo, a Sra. Hernández, mulher transgênero, foi morta devido à sua identidade de gênero e ao seu trabalho como defensora de direitos humanos.
Existe apenas um caso em que houve a publicação de relatório de mérito sem que o caso tenha sido enviado à Corte. Isso se deu por solicitação das próprias partes, que consideraram que o caso poderia ser encerrado já no âmbito da CIDH. Trata-se do caso 11.656, no qual a Comissão decidiu que o Estado colombiano violou, entre outros, o direito à igualdade perante a lei da Sra. Marta Lucía Álvarez Giraldo, que estava privada de liberdade na época dos fatos e foi impedida de exercer seu direito à visita íntima com uma pessoa do mesmo sexo, com base em argumentos discriminatórios. A CIDH recomendou que o Estado reparasse a vítima pecuniariamente e, ainda, que adotasse medidas voltadas a garantir o direito à visita íntima para pessoas homossexuais em todo o sistema prisional do país.
Existe ainda, um acordo de solução amistosa adotado pelas partes e homologado pela CIDH no Informe No. 81/09. No caso, a vítima, referida como senhora X (devido à solicitação de que sua identidade se mantivesse preservada), integrava os “carabineros”, uma unidade policial no Chile. De forma semelhante ao caso Flor Freire, a vítima desse caso foi submetida a um processo administrativo por manter relações com outra mulher, o que ela negava. Após anos de trâmite do caso perante a CIDH, a vítima promoveu um acordo de solução amistosa com o Estado, em que este reconheceu a violação do direito à igualdade perante a lei e garantiu que realizaria um pedido formal de desculpas, editaria uma circular alterando as normas relativas à preservação da privacidade de pessoas submetidas a processos administrativos, entre outras medidas.
Identificou-se, ainda, dez relatórios de admissibilidade proferidos entre 2016 e 2019. Esses casos estão tramitando perante a CIDH e podem, no futuro, ser arquivados, tornar-se objeto de acordo de solução amistosa, dar origem a relatórios de mérito e, possivelmente, serem enviados para a Corte. Em linhas gerais, seis desses casos tratam dos direitos de pessoas transgênero e travestis, sendo um relativo à não realização de cirurgia de redesignação sexual para uma mulher transgênero (Luisa Melinho, Brasil); dois relacionados às dificuldades de pessoas transgênero de promoverem a alteração em seus registros civis (Tamara Mariana Adrián Hernández, Venezuela e Karen Mañuca Quiroz Cabanillas, Perú); e três relacionados à violência contra pessoas transgênero (Alexa Rodríguez, El Salvador e Leonela Zelaya, Honduras) e travesti (Raiza Isabela Salazar, Colombia). Quatro dos casos, por sua vez, estão relacionados a violações contra pessoas homossexuais, sendo dois casos relativos a atos de violência contra uma mulher lésbica e homens gays (Gareth Henry, Simone Carline Edwards y Familias, Jamaica e Octavio Romero y Gabriel Gersbach, Argentina) e dois casos relativos a atos discriminatórios contra casais de homens gays realizados em um estabelecimento privado e no ambiente militar, respectivamente (Crissthian Manuel Olivera Fuentes, Perú e Fernando Alcântara de Figueiredo y LaciI Marinho de Araújo, Brasil).
Além disso, identificou-se um caso arquivado devido à falta de atividade dos peticionários no processo (Segundo Stivenson Ramos Salazar, Equador) e três declarados inadmissíveis pela ausência de esgotamento de recursos internos (José Alberto Pérez Meza, Paraguay, Juan Fernando Vera Mejías, Chile, Mayra Espinoza Figueroa, Chile), todos relacionados a atos de discriminação contra pessoas homossexuais.
Foram encontradas ainda 14 decisões relativas a medidas cautelares, das quais treze se referem a medidas de proteção de pessoas LGBTI que são ativistas pelos direitos desse grupo ou, ainda, de pessoas que são defensoras de direitos humanos em áreas diversas, mas que sofreram riscos desproporcionais em sua atuação devido ao preconceito com base em orientação sexual ou identidade de gênero: MC 621-03 - Elkyn Johalby Suárez Mejía y miembros de la Comunidad Gay Sampedrana, Honduras; MC 3-06 - Kevin Josué Alegría Robles y miembros de OASIS, Guatemala; MC 210-08 - Marlon Cardoza y otros miembros de la Asociación CEPRES, Honduras; MC 196-09 – Ampliación de Medidas Cautelares, Honduras; MC 196-09 – Solicitud de información respecto de Honduras; MC 18-10 - Indyra Mendoza Aguilar y otras, Honduras; MC 222-09 - Agustín Humberto Estrada Negrete, Leticia Estrada Negrete y Guadalupe Negrete Silva, México; MC 80/11 – Maurice Tomlinson, Jamaica; MC 155/13 – Caleb Orozco, Belize; MC 457/13 – Integrantes de la Asociación para una Vida Mejor de Honduras (APUVIMEH), Honduras; MC 236/16 – Juana Mora Cedeño y otro, Cuba; Medida Cautelar No. 767-18 - Mônica Tereza Azeredo Benício, Brasil. Foi identificado apenas um caso de medida cautelar em que não foi feita nenhuma menção a um papel de ativismo por parte das vítimas, mas somente uma alusão geral a agressões e ameaças devido à orientação sexual destas: a MC 153/11 – X y Z, Jamaica.
Para um maior conhecimento das atividades exercidas pela CIDH em relação às pessoas LGBTI em suas atividades de monitoramento e promoção, recomenda-se a visita à página da Relatoria sobre os Direitos das Pessoas LGBTI da CIDH, que compila um vastíssimo acervo de comunicados de imprensa, vídeos de audiências temáticas, descrições de atividades como cursos, seminários e reuniões de especialistas, questionários submetidos para a resposta da sociedade civil, descrições de visitas in loco e relatórios temáticos. De todo esse material, destacam-se os dois relatórios temáticos relativos à Violência contra Pessoas LGBTI, de 2015, e ao Reconhecimento dos Direitos de Pessoas LGBTI, de 2019. Esses documentos são uma fonte riquíssima para conhecer os diversos standards do SIDH sobre a matéria, incluindo questões que ainda não foram submetidas ao sistema de petições e casos, como por exemplo a temática dos direitos das pessoas intersexuais.
Faz-se imprescindível também fazer menção à visita in loco realizada ao Brasil em 2018, no qual os membros da relatoria, entre outras atividades, reuniram-se no Rio de Janeiro com diversos membros de organizações voltadas à proteção dos direitos das pessoas LGBTI, que apresentaram denúncias de violações e forneceram informações sobre o estado atual da proteção desses direitos no Brasil. Até o momento, contudo, a CIDH ainda não apresentou a versão final do relatório descrevendo a visita.
Ao final, avanços e perspectivas para o futuro
A abrangente análise apresentada, ainda que superficial, nos permite concluir que o SIDH vem avançando rapidamente em relação à diversidade dos casos de direitos das pessoas LGBTI que estão sendo analisadas pelo sistema. Embora ainda se note a destacada ausência de casos relativos a pessoas intersexuais e homens transexuais – uma situação que para ser modificada, na realidade, depende na maior parte da iniciativa da sociedade civil, que efetivamente leva os casos à CIDH – é possível observar casos sobre as mais diversas identidades que compõem o multifacetado grupo das pessoas LGBTI: há casos de mulheres lésbicas e homens gays, mulheres transexuais e travestis, e até mesmo de pessoas que se identificam como heterossexuais, mas que sentiram na pele o peso da discriminação por uma suposta homossexualidade. As violações analisadas também vão dos mais brutais casos de violência à discriminação disfarçada de argumentos jurídicos em processos judiciais, passando pela discriminação em estabelecimentos privados.
A triste constatação de que de fato todos os membros da comunidade LGBTI são especialmente suscetíveis aos mais diversos tipos de violações de direitos humanos, vem juntamente com a esperança de que o Sistema Interamericano de Direitos Humanos, por meio do trabalho que vem realizando, possa contribuir com o histórico movimento da sociedade civil organizada para que se conquistem cada vez mais direitos em nosso continente e para que todos os atos discriminatórios sejam objeto daquilo que sempre mereceram: a mais contundente condenação, seguida da devida reparação.
Nota: Embora se reconheça que existem outras siglas mais inclusivas e que vêm sendo mais utilizadas pelos movimentos organizados, tais como LGBTQ+, optou-se por adotar ao longo do texto a sigla que é utilizada pelos órgãos do Sistema Interamericano de Direitos Humanos em seus pronunciamentos.
*Lucas Albuquerque Arnaud de Souza Lima é mestre em Direito Internacional pela UERJ e bacharel em Direito pela UERJ. É pesquisador do Núcleo de Estudos e Pesquisa em Direito Internacional (NEPEDI-UERJ) e membro da Clínica Interamericana de Direitos Humanos da UFRJ.
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Bibliografia recomendada:
a) Limites do Direito Internacional: VASCONCELOS, Raphael Carvalho de. Teoria do Estado e a Unidade do Direito Internacional. Belo Horizonte: Arraes Editores, 2016.
b) Papel da Corte Interamericana na proteção de direitos: LEGALE, Siddharta. A Corte Interamericana de Direitos Humanos como Tribunal Constitucional: exposição e análise crítica dos principais casos. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2019.
c) Proteção de direitos das pessoas LGBTI em âmbito global: LELIS, Rafael Carrano; GALIL, Gabriel Coutinho. Direito Internacional Monocromático: previsão e aplicação dos Direitos lgbti na ordem internacional. Revista de Direito Internacional, Brasília, v. 15, n. 1. 2018. Disponível em <https://www.publicacoesacademicas.uniceub.br/rdi/article/view/5087>;
LELIS, Rafael Carrano; GALIL, Gabriel Coutinho. Os direitos das pessoas LGBTI em perspectiva global. JOTA, 17 mai. 2019. Disponível em: <https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/os-direitos-das-pessoas-lgbti-em-perspectiva-global-17052019>. Acesso em: 28 jun. 2020.
d) Proteção dos direitos das pessoas LGBTI no Brasil: CARDINALI, Daniel Carvalho. A Judicialização dos Direitos LGBT no STF: limites, possibilidades e consequências. Belo Horizonte: Arraes, 2018;
CARDINALI, Daniel Carvalho. Resistência e descumprimento das decisões do STF sobre direitos LGBT. JOTA, 20 jun. 2020. Disponível em: <https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/resistencia-e-descumprimento-das-decisoes-do-stf-sobre-direitos-lgbt-20062020>. Acesso em: 28 jun. 2020;
GOMES, Juliana Cesario Alvim. Por um Constitucionalismo Difuso: Cidadãos, Movimentos Sociais e o Significado da Constituição. Salvador: Editora JusPODIVM, 2020.
e) Sociedade civil e direitos LGBTI: Clínica Interamericana de Direitos Humanos. Relatório por conta da visita in loco da Comissão Interamericana de Direitos Humanos em 09 de novembro de 2018 – O Legislativo Brasileiro e os Direitos das Pessoas Lésbicas, Gays, Bissexuais, Trans e Intersexo no Brasil. Disponível em: <https://nidh.com.br/relatorio-da-clinica-idh-ufrj-para-comissao-interamericana-direitos-lgbti/>. Acesso em : 28 jun. 2020.
Por fim, todos os documentos citados estão disponíveis em: http://www.oas.org/es/cidh/;
http://www.corteidh.or.cr/.
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