*Por Amanda Filas Licnerski
Foto: Caso Herzog/CorteIDH/Flickr/CC BY-SA 2.0
Recentemente, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos apresentou dois casos relativos ao Brasil perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos: o caso Gabriel Sales Pimenta (Caso 12.675), apresentado à Corte IDH em 4 de dezembro de 2020, e o caso Antonio Tavares Pereira e outros (Caso 12.727), apresentado em 6 de fevereiro deste ano.
O primeiro caso se refere à denúncia do assassinato de Gabriel Sales Pimenta, defensor dos trabalhadores rurais, advogado popular do Sindicato de Trabalhadores Rurais e da Comissão Pastoral da Terra, no Estado do Pará, Brasil, no ano de 1982. Já o segundo caso é referente ao assassinato do trabalhador rural Antonio Tavares por policiais militares em 2 de maio de 2000, no Paraná, bem como às lesões sofridas por 185 camponeses ligados ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) na mesma ocasião.
Ambos os casos estão inseridos em um padrão sistemático e generalizado de violência contra trabalhadores rurais, lideranças e advogados ligados aos movimentos sociais de luta pela terra no contexto brasileiro, e da impunidade de tais crimes no Brasil, algo que perdura até hoje.
De acordo com o caderno Conflitos no Campo Brasil 2019, da Comissão Pastoral da Terra (CPT), o número de conflitos no campo no Brasil em 2019 foi o maior em um intervalo de 10 anos, com um total de 1.833 ocorrências registradas. De 2018 para 2019, o número de assassinatos no campo apresentou um aumento de 14% no país. As tentativas de assassinato, por sua vez, aumentaram 22% e as ameaças de morte foram de 165 para 201 registros. O relatório da CPT diz também respeito aos conflitos pela água: em 2019, esses conflitos aumentaram em 77%, com 489 ocorrências registradas (contra 276 de 2018). Em 2019, o Brasil tinha 578.968 pessoas em situação de conflito por terra e água.
No contexto global, o relatório “Defending Tomorrow” da ONG Global Witness, publicado em 2020, aponta que 2019 foi o maior em número de assassinatos, desaparecimentos forçados e ameaças de pessoas que defendem a terra e o meio ambiente no mundo. No documento, a ONG relata ainda que mais de dois terços dos assassinatos mundiais de defensores da terra e do meio ambiente ocorreram na América Latina, que é a região que mais registra casos desde que a Global Witness começou a publicar seus dados em 2012.
Aqui, relembra-se que outros casos brasileiros sobre o tema já foram levados anteriormente ao Sistema Interamericano de Direitos Humanos. No caso Sétimo Garibaldi, a Corte IDH condenou o Estado brasileiro, em 2009, pela falta de investigação referente ao assassinato do agricultor Sétimo Garibaldi, morto em 1998 durante um despejo ilegal de um acampamento do MST no Paraná. No entanto, a decisão da Corte no caso Sétimo Garibaldi ainda foi tímida em relação às medidas de reparação, determinando apenas a publicação da sentença em meios de imprensa e a indenização por danos morais e materiais aos familiares da vítima.
Por isso, agora a expectativa sobre os julgamentos dos casos Antonio Tavares Pereira e Gabriel Sales Pimenta na Corte IDH é grande. Destaca-se que, ainda que os casos sejam anteriores ao governo Bolsonaro, cabe à atual gestão responder enquanto Estado.
Como o caso Antonio Tavares Pereira e outros ainda não teve sua Carta de Submissão publicada no site da Corte IDH, abaixo você confere mais informações sobre o caso Gabriel Sales Pimenta.
Caso Gabriel Sales Pimenta: fatos e procedimento
Gabriel Sales Pimenta, advogado do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Marabá e defensor na região de Pau Seco em ações judiciais contra os latifundiários, foi baleado enquanto caminhava, o que ocasionou a sua morte, em 18 de julho de 1982. Gabriel recebeu diversas ameaças, em decorrência de seu trabalho, nos meses que antecederam o seu assassinato. Segundo depoimentos, Gabriel Sales Pimenta teria buscado a proteção do Estado, tendo denunciado as ameaças que vinha sofrendo à Secretaria de Segurança Pública em Belém, capital do Estado do Pará. Ademais, Gabriel teria ido pessoalmente a Belém em busca de ajuda em pelo menos três ocasiões, mas o apoio policial demandado de Belém chegou em Marabá apenas no dia seguinte da morte. No direito interno brasileiro, o processo criminal durou 23 anos e foi declarado extinto com base na prescrição no ano de 2006, de modo que o crime permanece impune.
Foto: Leila Jinkings/Correio de Carajás
Assim, no mesmo ano, em 09 de novembro de 2006, o Centro Pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL) e a Comissão Pastoral da Terra (CPT) apresentaram o caso do assassinato do advogado defensor de direitos humanos Gabriel Sales Pimenta à Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Na petição inicial, alegou-se a responsabilidade internacional da República Federativa do Brasil pelo assassinato, bem como pela impunidade que se seguiram aos fatos e que tanto os direitos de Gabriel Sales Pimenta quanto os de sua família foram violados.
A parte peticionária pleiteou que a Comissão reconhecesse a responsabilidade internacional do Estado por violações:
i) ao artigo I da Declaração Americana e aos artigos 4º e 5º da Convenção Americana por não adotar as medidas necessárias para proteger e garantir o direito à vida e à integridade pessoal de Gabriel Pimenta, dado o contexto de violência contra defensores de direitos humanos no Estado do Pará, bem como por não adotar as medidas necessárias de proteção frente às ameaças sofridas por Gabriel em sua particular situação de risco e por não investigar, processar e punir todos os responsáveis pelo seu homicídio;
ii) aos artigos XVIII da Declaração Americana e artigos 8º e 25 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em conexão com o artigo 1(1), por não ter atuado com a devida diligência nem em consonância o direito da vítima e de seus familiares a um recurso efetivo, com as devidas garantias judiciais, para esclarecer a verdade sobre o ocorrido, punir os eventuais responsáveis e reparar os danos sofridos dentro de um prazo razoável;
iii) ao artigo I da Declaração Americana e ao artigo 5º da Convenção Americana, em conexão com o artigo 1(1) do mesmo instrumento, pelos danos causados aos familiares de Gabriel Pimenta tendo em vista as ameaças sofridas, a falta de devida diligência na apuração dos fatos e no esclarecimento de toda a verdade sobre o ocorrido e a consequente impunidade dos perpetradores;
iv) ao artigo XXII da Declaração Americana, por não haver criado as medidas necessárias para proteger o direito à liberdade de associação de Gabriel.
O Estado argumentou que o caso não deveria ter sido admitido, por, supostamente, não caracterizar violação à CADH, uma vez que o crime não teria sido cometido por agente estatal. Além disso, que a vítima não teria levado ao conhecimento das autoridades o fato de estar sendo ameaçado, que a demora na solução da lide teria ocorrido em razão de fatores que estariam além de seu controle, que seguiu todos os procedimentos legais e que não haveria qualquer indício de que teria se esquivado de encontrar os acusados foragidos. Ainda, que os familiares do senhor Gabriel Sales Pimenta poderiam ter movido ação de reparação civil interna dirigida aos particulares responsáveis pela morte do senhor Gabriel Sales Pimenta independentemente da discussão penal.
Em seu Relatório de Mérito, ao trabalhar o contexto do caso, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos destacou que:
a violência relacionada a demandas por terra e por reforma agrária no Brasil é sistemática e generalizada;
em diferentes estados, há profundas conexões entre poderosos proprietários latifundiários e autoridades locais;
esses atores são, por vezes, mandantes de assassinatos e financiadores de desocupações forçadas;
não é incomum a constituição de grupos de pistoleiros para atacar e coagir trabalhadores rurais;
a violência é particularmente intensa contra os líderes dos movimentos e os defensores dos direitos humanos dos trabalhadores e serve para causar temor generalizado e, assim, desanimar os demais defensores de direitos humanos e atemorizar e silenciar as denúncias e reivindicações;
a estreita relação entre os mandantes dos crimes e as estruturas locais de poder tem garantido a impunidade na quase totalidade dos casos de violência rural no Brasil.
Ainda, ao tratar dos fatos do caso, a Comissão destacou a existência de irregularidades na investigação e assinalou que não foi proporcionada a devida proteção das testemunhas, nem foram efetivamente investigadas tais denúncias anteriores de Gabriel Pimenta de maneira que pudessem participar de maneira efetiva na investigação.
Em relação aos direitos violados, a CIDH concluiu que:
A) O Estado brasileiro teve ou devia ter conhecimento de uma situação de risco real e iminente para Gabriel Sales Pimenta e que não adotou nenhuma medida para protegê-lo frente ao risco em que se encontrava e evitar sua materialização e, portanto, considerou o Estado brasileiro como responsável internacionalmente pelo descumprimento do dever de prevenir violações do direito à vida, violando o artigo I da Declaração Americana em prejuízo de Gabriel Sales Pimenta.
B) O exercício legítimo que Gabriel Sales Pimenta fez do direito à liberdade de associação e defesa dos direitos dos trabalhadores rurais provocou uma represália fatal, ocorrida dentro de um contexto de total desproteção por parte do Estado brasileiro, sendo o Estado brasileiro responsável internacionalmente pela violação do direito à liberdade de associação previsto no artigo XXII da Declaração Americana, em prejuízo de Gabriel Sales Pimenta.
C) O Estado não investigou o assassinato de Gabriel Sales Pimenta com a devida diligência e, portanto, é responsável pela violação do direito à justiça (artigo XVIII da Declaração Americana) e dos direito às garantias judiciais e proteção judicial (artigos 8.1 e 25.1 da Convenção Americana), com relação ao artigo 1.1 do mesmo instrumento, em prejuízo de seus familiares.
D) A perda de um ente querido naquele contexto, somada à impunidade resultante de um processo de longuíssima duração, constituiu inelutável violação da integridade psíquica e moral dos familiares de Gabriel Sales Pimenta e, portanto, o Estado violou o direito à integridade pessoal consagrado no artigo I da Declaração Americana e no artigo 5.1 da Convenção Americana em prejuízo dos familiares de Gabriel Sales Pimenta.
A Comissão então recomendou ao Estado brasileiro que repare integralmente aos familiares da vítima, que desenvolva e conclua uma investigação de maneira diligente, eficaz e dentro de um prazo razoável com o objetivo de esclarecer os fatos de forma completa, e que tome medidas de não repetição, relacionadas com a prevenção de atos de violência e proteção de defensores de direitos humanos, incluindo o fortalecimento do Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos (PPDDH) e a capacidade para investigar delitos contra defensores de direitos humanos.
Conforme a Carta de Submissão do caso na Corte IDH, o Relatório de Mérito da CIDH foi enviado ao Estado brasileiro em 4 de dezembro de 2019, com um prazo de dois meses para informar sobre o cumprimento das recomendações. Em 20 de novembro de 2020, o Estado solicitou uma quarta prorrogação desse prazo à CIDH. Mesmo após quase um ano desde a notificação do relatório, o Estado brasileiro afirmou que a reabertura da investigação criminal seria inviável e foi observado que o Estado ainda não tinha apresentado uma proposta de indenização concreta, inexistindo o cumprimento das recomendações ou avanços substantivos em tal direção.
Desse modo, a Comissão decidiu submeter o caso à jurisdição da Corte Interamericana, pelas ações e omissões estatais ocorridas ou que continuaram ocorrendo depois de 10 de dezembro de 1998, data de aceitação da competência da Corte pelo Estado do Brasil. Agora, aguardam-se os próximos andamentos processuais do caso na Corte. Em breve, os representantes das vítimas devem apresentar perante a Corte seus Escritos de Petições, Argumentos e Provas (EPAP).
Caso Gabriel Sales Pimenta e a proteção especial de defensores de direitos humanos
Pelo aqui exposto, destaca-se que a análise pela Corte IDH do caso Gabriel Sales Pimenta representa uma oportunidade para que a Corte desenvolva e consolide sua jurisprudência a respeito da proteção especial de defensores e defensoras de direitos humanos, que ainda é muito tímida. A partir do caso, que apresenta questões de ordem pública interamericana, espera-se que sejam estabelecidos padrões aplicáveis em matéria de devida diligência para a investigação e punição de responsáveis pela morte de pessoas defensoras de direitos humanos, especialmente em contextos agrários e de grave violência.
Há muitos anos o Brasil e a América Latina ocupam posições de destaque no mundo como locais violentos para defensoras e defensores de direitos humanos e já passou do momento disso mudar. No Brasil, especialmente, casos emblemáticos como o assassinato de Chico Mendes, em 1988, o massacre de Eldorado dos Carajás, em 1996, o assassinato da missionária Doroty Stang, em 2005, da vereadora Marielle Franco, em 2018, e do guardião da floresta Paulo Paulino Guajajara, em 2019, entre diversos outros, demonstram que essa forma de violência atravessa décadas e a não resolução das causas que estruturam esses conflitos é uma realidade no país, conforme aponta o “Dossiê Vidas em Luta”.
Por todo o exposto, a análise do caso Gabriel Sales Pimenta pela Corte IDH tem potencial para contribuir para a proteção do direito à vida e à integridade pessoal de defensores e defensoras de direitos humanos nas Américas, bem como para o livre exercício de suas atividades. Para a Relatoria Especial da ONU sobre a situação dos defensores de direitos humanos (A/HRC/25/55, par. 73), acabar com a impunidade é uma condição essencial para garantir a proteção e segurança dos defensores de direitos humanos - e, agora, a Corte IDH tem a oportunidade de contribuir para isso.
Para aprofundamento dos temas abordados acima, sugerem-se as leituras dos seguintes documentos:
Relatório “Defending Tomorrow”, publicado em 2020, sobre dados de assassinatos de defensores da terra e do meio ambiente no mundo.
Relatório “Último aviso: ameaças de morte e assassinatos de pessoas defensores dos direitos humanos”, apresentado pela Relatora Especial sobre a situação dos defensores dos direitos humanos da ONU, em 2020.
Novas informações sobre o andamento do caso Gabriel Sales Pimenta na Corte IDH, sobre o caso Antonio Tavares Pereira e sobre as demais atividades do Sistema Interamericano de Direitos Humanos serão acompanhadas pelo Observatório Cosmopolita.
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* Amanda Filas Licnerski é pesquisadora do Observatório Cosmopolita do Sistema Interamericano de Direitos Humanos.