*Por Emmanuel Brasil e Thalia Pasetto
Foto: Wouter Engler / Manifestação referente ao caso de Ingabire Victoire Umuhoza, o qual foi comunicado à Corte Africana por indivíduos, contra Ruanda.
Ao contrário do sistema interamericano e do europeu de proteção dos direitos humanos, no sistema africano, os indivíduos, enquanto sujeitos de direito internacional, dependem da anuência do Estado infrator para poderem comunicar à Corte Africana violações aos bens jurídicos tutelados pela Carta Africana de Direitos Humanos e dos Povos, conhecida também como Carta de Banjul, principal instrumento jurídico a versar a respeito dos direitos humanos no continente.
A Carta é um documento que contempla, por exemplo, o direito à vida, à igualdade, à informação, à garantia do acesso à justiça, a um meio ambiente geral, satisfatório e propício ao seu desenvolvimento. Também é o único diploma a inovar - dentre os sistemas regionais de proteção e promoção em matéria de direitos humanos - no que toca à previsão do que seriam os direitos dos povos.
Em resumo, a Carta de Banjul, em homenagem à capital da República do Gâmbia onde foi adotada, tem como motivação principal defender a promoção e tutela dos direitos humanos e das liberdades básicas em África.
Primeiramente, é possível afirmar que o sistema africano se diferencia dos demais sistemas regionais em relação aos legitimados para submissão de casos à Corte. No sistema interamericano, o Pacto de São José da Costa Rica datado de 1969 prevê como legitimado ativo à Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) somente a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, enquanto que o sistema europeu não abre margem à faculdade de os Estados optarem pelo não-acesso de seus nacionais à Corte Europeia dos Direitos dos Homens. Os indivíduos, bem como os representantes das vítimas que foram sujeitas às graves violações aos bens juridicamente protegidos pela Convenção Europeia de Direitos dos Homens, possuem o direito de ingressar na Corte diretamente.
Por conseguinte, é de se notar que, no TADHP, o sujeito passivo em casos de violações a tais direitos será um Estado africano que tiver manifestado consentimento ao Protocolo relativo ao estabelecimento do Tribunal Africano de Direitos Humanos e dos Povos (TADHP) (Protocolo). No sistema regional africano, o Protocolo estipula que o Estado pode fazer, por meio de uma Declaração, o aceite de que indivíduos, bem como organizações não governamentais (ONG’s), possam ter o direito de peticionar diretamente ao Tribunal Africano.
O referido Protocolo de estabelecimento do TADHP elenca um rol numerus clausus em seu artigo 5º, parágrafo 1º, os 5 legitimados ativos a prestar queixa. São eles: a) a Comissão Africana de direitos humanos e dos povos (CADHP), criada e regulamentada na própria Carta africana cujo regime jurídico se encontra a partir do artigo 30 a 61, 64 e 68; b) o Estado parte que apresentar queixa à Comissão africana; c) um Estado parte contra o qual foi apresentado uma queixa à CADHP; d) o Estado parte cujo cidadão é vítima de violações dos direitos dos homens e por fim, e) organizações intergovernamentais africanas credenciadas pela União Africana.
Vale lembrar que o TADHP irá complementar e reforçar os trabalhos e propósitos das funções da Comissão Africana encartados no artigo 45 da Carta, a saber da: a) promoção e a garantia de proteger os direitos humanos e dos povos em conformidade com as condições estabelecidas pela “Convenção africana”; b) a interpretação de qualquer disposição da Carta e, por último, c) a execução de quaisquer outras tarefas que confiadas pela Conferência dos Chefes de Estado e de Governo a ela.
Contudo, é o parágrafo 3º do artigo 5º do Protocolo que dispõe que o Tribunal poderá conceder o acesso direto à sua jurisdição às ONG’s que figuram como observadores junto da Comissão e indivíduos, desde que atendidos as condições fixadas no artigo 34, parágrafo 6º do mesmo instrumento.
Este artigo se refere à faculdade que os Estados detêm de possibilitarem que indivíduos submetam casos de violações de direitos humanos e dos povos ao Tribunal, desde que expressamente consentido por eles próprios. Ou seja, um Estado somente pode ser acusado no Tribunal Africano por um indivíduo ou uma ONG nacional caso ele tenha antes concordado com essa forma de peticionamento.
Em suma, o que o Protocolo pretendeu foi que os seus Estados partes pudessem declarar de maneira formal os novos legitimados ativos. Uma vez não havendo Declaração sobre a questão, o Tribunal não irá sequer receber queixas advindas diretamente de indivíduos ou ONG’s.
Foto: CHRDA Web / Evento sobre o papel das organizações da sociedade civil, especialmente em Camarões, para promover a missão da Corte Africana de Direitos Humanos e dos Povos, organizado pelo Centre for Human Rights and Democracy in Africa.
Ademais, o artigo 6º do Protocolo conjuga também outras formas de submissão de casos ao TADHP na qual este deverá solicitar parecer à Comissão Africana “que deve emiti-lo o mais depressa possível” no tocante à admissibilidade ou não da submissão e aplicação do artigo 5, §3º, podendo assim que publicado o parecer seguir para fases seguintes ou transferi-lo à Comissão para uma análise mais pormenorizada ou fazer representá-los.
Atualmente, dos 52 Estados que assinaram o Protocolo em exame, 31 o ratificaram e somente 10 desses realizaram a Declaração aceitando a submissão de casos por indivíduos e por ONGs.
É de se observar, entretanto, que dos 10 Estados que depositaram a Declaração, 4 deles já reverteram sua decisão, restando atualmente apenas 6, quais sejam: Burquina Faso, Gâmbia, Gana, Mali, Malawi e Tunísia. Tanzânia, Ruanda, Benin e Costa do Marfim são aqueles que já depositaram a Declaração e a retiraram após determinado período.
Por trás desse movimento de reversão encontra-se uma espécie de tentativa dos Estados de evitar, ou ao menos diminuir, novas condenações e intervenções advindas do Tribunal Africano, uma vez que os 4 países anunciaram o fim da validade da Declaração após serem alvos de decisões condenatórias do órgão julgador.
O primeiro país a iniciar o movimento e a abrir precedente para os demais foi a Ruanda, em 2016. O país havia ratificado a Declaração em 2013 e decidiu mudar sua posição após o julgamento do caso Ingabire Victoire Umuhoza (App. No. 003/2014) em que foram reconhecidas violações do direito de expressão e do devido processo legal contra o requerente.
Na ocasião, sem haver previsões expressas no Protocolo ou na Carta de Banjul sobre o procedimento de desistência da aplicação do art. 34 (6), o Tribunal decidiu que a retirada é válida mas apenas passa a produzir efeitos após um ano da sua data de notificação. Dessa forma, indivíduos e ONG’s ainda podem promover queixas durante esse período, assim como os casos já pendentes permanecem inafetados.
Em 2019, foi a vez da Tanzânia abandonar a aplicação da Declaração. Sendo o Estado contra o qual há o maior número de casos finalizados e pendentes no Tribunal, a desistência do país ocorreu após algumas decisões, com ênfase para o julgamento do caso Ally Rajabu e Outros que impôs o fim da obrigatoriedade da imposição da pena de morte em casos de homicídio.
Poucos meses depois, os casos mais recentes foram protagonizados por Benin e pela Costa do Marfim. Ambas as nações publicaram sua retirada da Declaração na primeira metade de 2020, em março e abril respectivamente, após os juízes do Tribunal Africano votarem a favor dos indivíduos aplicantes. No caso de Benin, a decisão veio após cinco sentenças do Tribunal, incluindo uma medida provisória de adiamento das eleições até o julgamento dos méritos do caso envolvendo alegações de prisões políticas contra um candidato de oposição ao então presidente (App. 062/2019).
No caso da Costa do Marfim, o cenário não era muito diferente. A decisão de não mais aceitar casos advindos de indivíduos e ONGs também foi tomada pelo governo menos de uma semana após o Tribunal Africano emitir ordens provisórias determinando que a corte nacional suspendesse o mandado de prisão de Guillaume Soro, ex-líder rebelde que pretendia concorrer às eleições presidenciais (App. No. 12/2020). Para além de efetuar a retirada da Declaração, o Estado também não cumpriu as medidas impostas pelo Tribunal e Soro foi condenado a uma pena de 20 anos, restando inelegível para as eleições que se aproximavam.
Diante da retirada das Declarações destes Estados, os cidadãos e as ONG’s desses territórios acabam por perder um importante instrumento legal de denúncia e busca de restauração das violações de direitos humanos sofridas. Para além disso, esse movimento também enfraquece enormemente a efetividade e a influência do Tribunal Africano no continente, especialmente considerando-se que os outros atores autorizados a peticionar ao tribunal, os Estados-membros e a Comissão Africana, possuem pouca representatividade no total de casos em julgamento. Até hoje, nenhum Estado submeteu um caso ao Tribunal, enquanto a Comissão promoveu a submissão de apenas três.
Se por um lado a facultabilidade do art. 34 (6) referente ao peticionamento direto de indivíduos e ONGs facilita a aceitação da jurisdição da Corte Africana por parte dos Estados, ela também colabora para sua baixa eficiência no ambiente social, uma vez que os cidadãos da maior parte dos países da região não encontram instrumentos jurídicos acessíveis para reclamar violações de direitos humanos.
Atuando como um meio termo no quesito acessibilidade de indivíduos em relação ao sistema interamericano e europeu, o funcionamento do sistema africano e as retiradas de alguns países de suas Declarações referentes ao art. 34 (6) do Protocolo trazem à tona novamente a constante linha tênue sobre a qual as Cortes internacionais tentam se sustentar, conjugando a soberania dos Estados envolvidos e a máxima proteção possível aos direitos humanos dos cidadãos sob sua jurisdição.
*Emmanuel Brasil e Thalia Pasetto são pesquisadores do Observatório Cosmopolita do Tribunal Africano de Direitos Humanos e dos Povos.
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