*Por Gabriel Borba e Theo Scudellari
Foto: Soldados armênios na fronteira com o Azerbaijão, em 2020 (AFP).
No dia 16 de setembro de 2021, A República da Armênia apresentou petição à Corte Internacional de Justiça alegando violações da República do Azerbaijão à Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial. A Convenção, ratificada por ambos os países nos anos 90, tem por objetivo estabelecer a diversidade étnico-racial entre os signatários e diminuir restrições, distinções ou exclusões baseadas em cor, raça, etnia e descendência.
Segundo a República da Armênia, o Azerbaijão teria submetido, nas últimas décadas, a população armênia a diversas violações baseadas em sua etnia, tendo sido verificados diversos casos de discriminações raciais, assassinatos em massa, torturas e abusos - sobretudo a partir dos conflitos observados entre os países em 2020, os quais teriam implicado em aumento nas discriminações étnico-raciais e não observância aos direitos humanos previstos na Convenção. Tais violações teriam continuado mesmo após o acordo de cessar-fogo celebrado pelos países em novembro de 2020. Em sua petição, a Armênia requereu que a República do Azerbaijão seja responsabilizada pelas violações à Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, de modo a prevenir novas ofensas e reparar os danos causados.
Segundo o artigo 22 da Convenção, qualquer controvérsia relativa a sua interpretação ou à aplicação do seu texto poderá ser submetida à jurisdição da Corte Internacional de Justiça, caso as negociações entres os países não fossem frutíferas.
Menos de uma semana depois da apresentação da petição armênia, a República do Azerbaijão apresentou à Corte Internacional de Justiça sua própria ação contra a República da Armênia, também alegando violações à Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial. O país afirma que a Armênia empreendeu políticas de limpeza étnica ao incitar discursos de ódio e propaganda racista contra os azerbaijanos. Ambos os procedimentos, portanto, seguem as fundamentações e argumentos jurídicos bastante similares.
Conheça, a seguir, o histórico das tensões que originam a disputa levada à Corte Internacional de Justiça e os argumentos levados por Armênia e Azerbaijão às audiências públicas realizadas em Haia entre os dias 14 e 19 de outubro.
As origens das hostilidades entre Armênia e Azerbaijão
A Armênia e o Azerbaijão estão localizados na região do Transcáucaso, entre o Mar Negro e o Mar Cáspio, estrategicamente relevante por suas vastas reservas de gás natural e petróleo, além de notável passagem da Europa para a Ásia e da Rússia para o Oriente Médio.
O principal motivo de dissídio entre os países refere-se ao território conhecido como Nagorno Karabakh, inserido geograficamente dentro da fronteira do Azerbaijão, mas com predominância de população armênia. Além da diferença de nacionalidade, a questão religiosa revela-se importante na região: enquanto os azeris são predominantemente muçulmanos, os armênios e os habitantes de Nagorno Karabakh são, em sua maioria, cristãos.
Foto: Mapa da fronteira entre Armênia e Azerbaijão / ParsToday.
Até o fim da Primeira Guerra Mundial, tais grupos viviam em relativa paz. Após a formação da União Soviética, a região de Nagorno Karabakh foi colocada sob responsabilidade do Azerbaijão, o que desagradou a população armênia, alimentando hostilidades que não se manifestavam de forma mais latente apenas pela gestão da URSS. Com o enfraquecimento do bloco soviético a partir da década de 80, no entanto, conflitos passaram a ser deflagrados, criando uma conjuntura cada vez mais problemática na região.
Desde então, ambos os países reivindicam o território de Nagorno Karabakh. Os armênios apontam a variedade de monumentos de cunho cristão e a construção de elementos culturais na região, pautados pela presença armênia, enquanto os azeris alegam, além da própria questão da inserção de Nagorno Karabakh em seu território, que tais estruturas são herança de antigos cristãos de origem turca, possuindo uma relação histórica estreita com o Azerbaijão.
Com o fim da União Soviética e a redução de um controle mais robusto na região, o território de Nagorno Karabakh declarou-se independente do Azerbaijão, autodenominando-se República de Artsakh – embora o país não seja reconhecido, formalmente, no âmbito internacional. Entre 1991 e 1994, conflitos de larga escala se estabeleceram no Transcáucaso, dando origem a crises militares, geopolíticas e migratórias. A exemplo disso, destaca-se o fato de a Armênia controlar porções estratégicas do território do Azerbaijão, principalmente nas proximidades das áreas (similares a “corredores”) que conectam a Armênia com Artsakh.
Por meio da intermediação de países como Rússia, França e Estados Unidos, Armênia e Azerbaijão assinaram um cessar-fogo em 1994, com o objetivo de mitigar as consequências do conflito, com a tentativa de criação de um acordo para conclusão das discussões quanto a suas divergências.
Foto: Armenian Unified Infocenter.
Nenhuma das partes, no entanto, demonstrou satisfação com os acordos propostos nos ano seguintes. Eleições realizadas tanto na Armênia quanto no Azerbaijão criaram expectativas na comunidade internacional para facilitação da resolução das disputas, mas nenhuma mudança de posicionamento efetiva foi verificada, mantendo-se a instabilidade constante na região e o temor de novos conflitos.
Apesar das incertezas, poucos confrontos diretos foram conflagrados entre tropas dos países até 2020, quando novos atritos romperam com o acordo de cessar-fogo firmado em 1994 e atraíram as atenções da comunidade internacional.
Em novembro de 2020, um acordo de paz foi assinado pelo primeiro-ministro da Armênia, Nikol Pashinyan, e o presidente do Azerbaijão, Ilham Aliyev, com intermédio do governo russo. Apesar disso, os resultados do conflito não agradaram uma parcela significativa da população armênia – visto que o território de Artsakh continua sob controle azeri –, desencadeando revoltas e protestos tanto nas fronteiras da Armênia quanto na própria região de Nagorno Karabakh.
As audiências públicas realizadas pela Corte Internacional de Justiça
Menos de um mês após a apresentação do caso à Corte Internacional de Justiça, deu-se início às audiências públicas para decidir sobre as medidas cautelares pleiteadas por Armênia e Azerbaijão. Ao instituírem os procedimentos, ambos os países requereram, com extrema urgência, que a Corte determinasse medidas cautelares para o não agravamento da situação na região e a mitigação dos impactos das recorrentes discriminações étnico-raciais indicadas em suas petições.
Na audiência pública referente ao processo instituído pela Armênia, requereu-se a soltura de nacionais armênios presos durante o conflito de 2020, a não discriminação a pessoas de origem armênia na região de Nagorno-Karabakh, o resguardo de quaisquer evidências relativas às alegações apresentadas, além da preservação e do acesso à história, cultura, religião e herança armênia. Ao final da audiência, os representantes da Armênia solicitaram que a República do Azerbaijão apresentasse à Corte, periodicamente, relatórios sobre o cumprimento das medidas requeridas.
Durante a audiência do caso apresentado pelo Azerbaijão, foi requerido também o resguardo de evidências capazes de confirmar as alegações apresentadas pelo país, além da apresentação de relatórios sobre o cumprimento das medidas cautelares pela Armênia. Além disso, os representantes do Azerbaijão requereram a retirada de minas terrestres colocadas em seu território por tropas armênias e o cessar de qualquer implementação de artefatos explosivos. Quanto às discriminações étnico-raciais indicadas em sua petição, o Azerbaijão pediu que fossem suspensas as incitações ao ódio racial e à violência com motivação racial direcionada aos azerbaijanos.
Até o fechamento deste artigo, a Corte Internacional de Justiça ainda não proferiu decisão quanto às medidas cautelares apresentadas pelas partes. Os desdobramentos do caso você acompanha no Observatório Cosmopolita da Corte Internacional de Justiça.
*Gabriel Borba e Theo Scudellari são pesquisadores do Observatório Cosmopolita da Corte Internacional de Justiça.
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