* Por Fernanda Sostisso Rubert e Paula Barbieri
Foto: Xinhua/Rahel Patrasso
INTRODUÇÃO
A pandemia da COVID-19 vem afetando profundamente, com maior ou menor intensidade, os direitos humanos de povos e indivíduos no mundo. Por isso, os Estados devem protegê-los e garanti-los de maneira integral e interseccional. O efeito da COVID-19 nos direitos humanos se evidencia, por um lado, pelo surgimento de novos debates. O acesso a um respirador conforma parte do direito à saúde e do direito à vida? À luz dos direitos humanos, os Estados possuem o dever de distribuir gratuitamente máscaras, desinfetantes e remédios essenciais para o tratamento desta doença? Apesar de esse não ser o objeto do nosso texto, mais informações sobre esses desdobramentos podem ser encontradas aqui. Trataremos neste artigo sobre as medidas empreendidas pelo Sistema Interamericano de Direitos Humanos em relação à COVID-19, atuação essa que é muito influenciada por uma outra face da afetação de direitos humanos pela pandemia.
A atual crise exacerba vulnerabilidades e lacunas pré-existentes, em que povos indígenas, pessoas LBGTQI, mulheres, afrodescendentes, pessoas com deficiência, crianças, pobres, migrantes e refugiados, dentre outros grupos, tiveram suas condições agravadas não só pela pandemia em si, mas em razão de medidas – muitas vezes autoritárias - implementadas pelos governos em resposta a esta doença. Alguns Estados, inclusive, optaram por impor formalmente um estado de emergência e determinar a suspensão do exercício de alguns direitos, o que gera inúmeras preocupações. O tema já foi abordado aqui no Cosmopolita neste texto.
Na América Latina e Caribe, região mais desigual do mundo, a COVID-19 causou um incremento substancial na pobreza e na fome, fazendo com que grupos historicamente discriminados assumam uma carga ainda mais desproporcional. Ademais, a região das Américas é caracterizada pelos altos índices de trabalho informal, pela falta de moradia, dificuldades em acesso à água potável e a estruturas de saneamento básico. Somam-se a isso os altos índices de violência generalizada, especialmente violência de gênero e racial ou étnica, além de uma persistente e profunda discriminação para com grupos em situação de vulnerabilidade, agravada por cenários de impunidade.
Em decorrência destas características, o Sistema Interamericano de Direitos Humanos (SIDH), composto pela Comissão e Corte Interamericanas de Direitos Humanos, vem empregando esforços para garantir que os 35 Estados-membro da Organização dos Estados Americanos (OEA) adotem uma abordagem de direitos humanos em suas ações de combate à COVID-19.
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
Em abril de 2020 a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) emitiu a declaração “Covid-19 e direitos humanos: os problemas e desafios devem ser abordados a partir de uma perspectiva de direitos humanos e com respeito às obrigações internacionais”, estimulando os Estados a implementar medidas que observem os instrumentos interamericanos de proteção dos direitos humanos e a jurisprudência dano enfrentamento da pandemia.
Dentre as orientações presentes neste documento, é enfatizada pela Corte a necessidade de que todas as medidas que os Estados adotem para enfrentar esta pandemia sejam temporariamente limitadas, legais, ajustadas aos objetivos definidos de acordo com critérios científicos, razoáveis, estritamente necessárias, proporcionais e estejam em conformidade com os demais requisitos desenvolvidos na legislação interamericana de direitos humanos.
A declaração, ademais, demonstra a preocupação da Corte IDH com a proteção dos direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais (DESCA), previstos no Protocolo de San Salvador, sobretudo dos grupos que são desproporcionalmente afetados por estarem em situação de maior vulnerabilidade.
Nesse cenário, é realçado o dever de os Estados empreenderem ações para mitigar os possíveis impactos sobre as fontes de trabalho e renda de todos os trabalhadores. Devido às medidas de isolamento social e ao impacto que isso gera na economia pessoal e familiar, deve-se buscar mecanismos para assegurar às pessoas a renda necessária à subsistência em condições de dignidade humana, fornecendo alimentos e remédios básicos, bem como suprindo outras necessidades elementares para aqueles que não possam realizar suas atividades normais e para a população em situação de rua.
A Corte destaca, ainda, que o acesso à informação verdadeira e confiável, assim como à Internet, é essencial. Nesse sentido, os Estados devem manter esforços para garantir que o uso da tecnologia de vigilância no monitoramento da disseminação do COVID-19 “seja limitado e proporcional às necessidades de saúde, e não envolva uma interferência desmedida e lesiva à privacidade, à proteção de dados pessoais e à observância ao princípio geral de não-discriminação”.
O ponto central de atenção da Corte está em garantir de maneira oportuna e adequada os direitos à vida e à saúde de todas as pessoas sob a jurisdição dos Estados, sem qualquer discriminação. Especificamente em relação ao direito à saúde, que compõe o grupo dos DESCA, a Corte apresentou um infográfico em que destacou as seguintes obrigações dos Estados que devem ser reforçadas no contexto de pandemia: a) não discriminação no acesso aos sistemas de saúde; b) não adoção de medidas regressivas injustificadas; c) fornecimento de cuidados de saúde oportunos e apropriados de acordo com os princípios de disponibilidade, acessibilidade, aceitabilidade e qualidade e d) especial atenção aos grupos vulneráveis e marginalizados.
Além disso, esses documentos dedicam especial atenção à situação de mulheres e pessoas privadas de liberdade. Sobre as mulheres, a Corte IDH alerta que as medidas de isolamento social podem levar a um aumento exponencial da violência contra mulheres e meninas em suas casas. Em relação às pessoas privadas de liberdade, a Corte apontou que o COVID-19 pode ter um alto impacto em relação a elas e, por isso, orientou os Estados a reduzir os níveis de superlotação e superpopulação, adotando, de maneira ordenada, alternativas à privação de liberdade.
Também sobre o tema pessoas privadas de liberdade, é indispensável destacar a decisão da Corte IDH, emitida em caráter de medida urgente, na fase de cumprimento de sentença do caso “Vélez Loor vs. Panamá", em 26 de maio de 2020.
O caso Vélez Loor foi julgado pela Corte IDH em 2010, ocasião em que o Panamá foi condenado por violar os direitos à liberdade pessoal, às garantias individuais, ao princípio da legalidade e à integridade pessoal do equatoriano Jesús Vélez Loor, após ele ter sido vítima de tortura e tratamento cruel e degradante em diferentes prisões panamenhas na Provínica de Darén. Na sentença, a Corte determinou, dentre outras medidas reparatórias, que o Estado do Panamá adequasse os espaços destinados a pessoas detidas por questões migratórias para que cumprissem com padrões mínimos compatíveis com um tratamento humano e uma vida digna. Desde então, o caso se encontra na etapa de supervisão do cumprimento de sentença, prevista no artigo 69.1 do Regulamento da Corte.
Considerando esta recomendação, em 7 de maio de 2020 o Centro de Justiça e Direito Internacional (CEJIL), representante da vítima do caso (Sr. Vélez Loor), solicitou que a Corte se manifestasse sobre o não cumprimento adequado da sentença, visto que as condições dos centros de detenção seguem precárias e geram um risco grave e urgente para as mais de 1.700 pessoas detidas em Darén, onde foram detectados dezenas de casos de COVID-19.
Em sede de medida de urgência, a presidência da Corte determinou ao Estado panamenho a redução da superpopulação de pessoas migrantes detidas, a observância ao princípio de não-devolução, o estabelecimento de protocolos de atuação para a prevenção do contágio do COVID-19 para pessoas migrantes e a garantia do acesso aos serviços de saúde sem discriminação a todas as pessoas migrantes detidas nas estações de recepção migratória, incluindo o tratamento rápido do COVID-19.
Ainda que o caso seja vinculante apenas ao Panamá, cumpre ressaltar que todos os Estados obrigados à jurisdição da Corte devem fazer o controle de convencionalidade, inclusive observando a jurisprudência do Tribunal, que constitui a interpretação dada à Convenção Americana. Desse modo, as obrigações impostas pela Corte ao Estado panamenho no caso Vélez Loor irradiam para todos os 21 Estados que aceitaram a competência contenciosa da Corte Interamericana, entre eles o Brasil.
Foto: Bobby Yip/ Reuters
COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
A fim de monitorar as ações adotadas pelos Estados, elaborar recomendações para harmonizar as medidas de contenção da pandemia de COVID-19 com os standards interamericanos de direitos humanos e proporcionar apoio técnico aos Estados, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), com apoio de suas relatorias especiais (Relatoria sobre a Liberdade de Expressão e Relatoria sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais), criou a Sala de Coordenação e Resposta Oportuna e Integrada (SACROI) para COVID-19.
Uma das medidas prioritárias da SACROI foi a preparação da Resolução 01/2020 sobre “pandemia e direitos humanos nas Américas”, que estabelece o marco jurídico interamericano sobre o tema, determina quais são os princípios que devem guiar as respostas a COVID-19 e emite 85 recomendações aos Estados. As recomendações estão divididas em quatro principais eixos: a) direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais; b) estados de exceção, restrições às liberdades fundamentais e Estado de Direito; c) grupos em especial situação de vulnerabilidade; d) cooperação internacional e intercâmbio de boas práticas. Essa resolução recebeu um respaldo positivo de diversas entidades da sociedade civil e de autoridades estatais de países como Chile, Brasil, Argentina, Costa Rica, México, Panamá, Honduras e opera como um guia abrangente sobre como uma abordagem de direitos humanos pode – e deve – ser operacionalizada pelos Estados.
Outra resolução elaborada pela SACROI foi a de número 04/2020, que trata especificamente sobre os direitos humanos de pessoas com COVID-19, o que engloba pessoas presumidamente contagiadas, pessoas assintomáticas, sintomáticas, pessoas que fazem testes e vítimas mortais e seus familiares e/ ou cuidadores (as). Neste documento são determinadas diretrizes para guiar os Estados para uma completa proteção do direito à vida, à saúde e à integridade pessoal. Até mesmo elementos sobre a proteção dos direitos de pessoas com COVID-19 em relação à intervenção de atores privados ou empresas no âmbito da saúde, sobre o uso de dados pessoais e sobre o direito de consentimento livre, prévio e informado estão presentes.
Vinculada a essa resolução e considerando as milhares de vítimas mortais acometidas pela COVID-19 na região, a SACROI emitiu um guia prático sobre os standards interamericanos de respeito ao luto, aos rituais funerários e homenagem às pessoas falecidas. Por abordar temas que raramente estão inseridos nos debates sobre direitos humanos – mas que são infelizmente centrais nas circunstâncias atuais – o guia se reveste de especial importância. Além disso, este documento, para além de listar recomendações, faz um interessante resumo de práticas regionais e globais, positivas e negativas, que vêm sendo empregadas.
Ademais, a SACROI está fazendo um mapeamento de todas as medidas de exceção adotadas pelos Estados (fechamento de fronteiras e toque de recolher, por exemplo) para analisar seu conteúdo e também para assegurar que essas medidas excepcionais não se convertam na normalidade.
Também cabe mencionar que a SACROI criou foros sociais com a sociedade civil de cada país, a fim de ampliar o diálogo direto com os países, receber denúncias e seguir o cumprimento de recomendações. Já foram realizados encontros, por exemplo, com a sociedade civil da Colômbia, Argentina e Brasil. Ainda, a CIDH vem se reunindo com autoridades estatais para identificar oportunidades de cooperação técnica e vem publicando boletins, comunicados de imprensa e webinars com informações sobre a COVID-19 e direitos humanos, a fim de estimular o escrutínio público sobre as ações implementadas a nível nacional.
Apesar da centralidade do trabalho da SACROI durante a pandemia, outras atividades da CIDH também se relacionam à crise. A Comissão processou 97 solicitações de Medidas Cautelares ligadas ao contexto da pandemia, sobre 15 distintos países. No geral, tratam de migrantes, pessoas privadas de liberdade e comunidades tradicionais. Um exemplo é a medida cautelar concedida aos Membros dos Povos Indígenas Yanomami e Ye'kwana em relação ao Brasil, emitida em 17 de julho de 2020. Nela, os peticionários solicitaram à CIDH que requeresse ao Estado brasileiro adotar as medidas necessárias para a proteção da vida e da integridade pessoal destes povos indígenas, gravemente ameaçadas pela pandemia e pela inação do Brasil a este respeito. A falta de medicamentos e de equipamentos médicos, a particular vulnerabilidade imunológica dos povos Yanomami e Ye’kwana, a quantidade de casos confirmados e a alegada presença ilegal de garimpeiros na Terra Indígena Yanomami, combinadas com a situação de vulnerabilidade histórica enfrentada pelos povos indígenas no Brasil, foram os fatores avaliados para a concessão desta medida cautelar.
Este material elaborado pela CIDH já impactou medidas estatais, pois alguns Estados emitiram decisões administrativas ou judiciais fundamentadas no trabalho da SACROI. O Ministro Luiz Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal do Brasil, mencionou a medida cautelar dos povos Yanomami e Ye’kwana em sua decisão monocrática sobre o Plano Emergencial para os Povos Indígenas. Em um caso laboral, o ministro Ricardo Lewandowski citou a Resolução 01/2020. Ainda, Argentina, El Salvador, Costa Rica e Bolívia incorporaram parte das recomendações da CIDH em suas ações de combate à COVID-19.
Foto: Adriano Machado/REUTERS
CONCLUSÃO
É evidente que o Sistema Interamericano de Direitos Humanos está atuando com esforços majorados para evitar o estabelecimento e aprofundamento de vulnerabilidades. Conforme destacado, a pandemia de COVID-19 causou um agravamento das mazelas já existentes e, nesse contexto, a Corte e a Comissão Interamericanas têm cumprido com seu papel de estabelecer e difundir standards de atuação para os Estados Americanos para que os direitos humanos sejam respeitados.
Em que pese seja inegável que a dimensão alcançada e os impactos gerados pela pandemia do COVID-19 são ameaças à garantia dos direitos humanos, é precisamente neste momento que os Estados são chamados a reiterar seus compromissos de proteção, garantia e não discriminação assumidos a partir da Convenção Americana. A observância dos parâmetros de proteção fornecidos pelo SIDH pode promover uma resposta efetiva em meio ao caos que inevitavelmente resulta em tempos de crise, além de limitar eventuais prejuízos gerados pela imposição de medidas desproporcionais que não respeitam as exigências dos direitos humanos.
*Fernanda Sostisso Rubert e Paula Barbieri são membros do Observatório Cosmopolita da Corte Interamericana de Direitos Humanos.
**As opiniões expressas neste texto não refletem necessariamente as opiniões de instituições ou organizações às quais as autoras estão vinculadas.
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