*Por Catarina Ramos e Paula Alvarez
Na imagem: Petita Albarracín, mãe de Paola Guzmán / Foto: Center for Reproductive Rights/El País.
No mês de julho de 2020, repercutiu a notícia de que o Estado brasileiro se aliou a governos de países islâmicos para esvaziar propostas de resoluções no Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas sobre os direitos das mulheres. O objetivo da delegação brasileira era eliminar das resoluções quaisquer menções à educação sexual e à saúde reprodutiva.
A postura do Brasil vem na esteira de movimentos religiosos e ultraconservadores que ganham força no cenário internacional e que buscam, dentre diversas pautas, retardar o avanço da afirmação dos direitos sexuais e reprodutivos.
É nesse contexto que detém grande relevância a sentença proferida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, em junho de 2020, no caso Guzmán Albarracín e outras Vs. Equador. Trata-se de um importante precedente sobre a preservação dos direitos sexuais e reprodutivos das meninas e das adolescentes no âmbito escolar.
Os fatos do caso tiveram início em 2001, quando Paola del Rosario Guzmán Albarracín tinha 14 anos e começava a ter dificuldades em algumas matérias da escola. Diante disso, o vice-reitor do seu colégio fez uma proposta de passá-la de ano em troca de que ela mantivesse relações sexuais com ele. Cumpre ressaltar que houve testemunhos de que funcionários do colégio tinham conhecimento desses abusos e de que Paola não teria sido a única vítima do vice-reitor.
Apesar disso, nenhuma ação concreta foi tomada, e, mais de um ano após o início dos abusos, no dia 12 de dezembro de 2002, a vítima ingeriu pílulas que continham fósforo branco, falecendo na manhã do dia seguinte. Paola escrevera três cartas antes de suicidar-se, dentre as quais uma era endereçada ao vice-reitor e expressava que ela se sentia enganada por ele e que decidiu tomar veneno por não suportar o que estava sofrendo.
Os processos penais e administrativos instaurados para responsabilização do vice-reitor restaram infrutíferos, uma vez que ele esteve foragido desde que vieram à tona tais abusos e violações.
Em sua fundamentação, a Corte se valeu de diversos instrumentos internacionais para preencher de conteúdo as disposições da Convenção Americana de Direitos Humanos, dentre os quais cumpre citar a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará) e a Convenção sobre os Direitos das Crianças (do âmbito do Sistema Universal de Direitos Humanos).
A partir disso, concluiu que dos direitos à integridade pessoal, à vida privada, à uma vida digna e à educação, como também dos deveres dos Estados de prevenir e sancionar a violência contra a mulher e de adotar medidas de proteção em relação às crianças, decorre o direito da criança à uma vida livre de violência sexual[1] no ambiente escolar.
É dever dos Estados, portanto, estabelecer mecanismos simples, acessíveis e seguros para que os fatos relativos à violência sexual nas escolas possam ser denunciados, investigados e sancionados. No âmbito dos deveres de prevenção, a Corte considerou que o direito à educação sexual e reprodutiva integra o direito à educação (art. 13 do Protocolo de San Salvador). A educação sexual e reprodutiva deve ser garantida, portanto, de maneira integral e não discriminatória, de modo a possibilitar um adequado entendimento das implicações das relações sexuais e afetivas, particularmente em relação ao consentimento para tais vínculos e aos direitos sexuais e reprodutivos.
Analisando a situação concreta, a Corte reconheceu como fatores que agravaram a condição de vulnerabilidade da vítima: a existência de uma relação hierárquica entre o vice-reitor e a criança; os estereótipos de gênero, que tendem a culpabilizar a vítima de abuso sexual; e a ausência de educação sobre direitos sexuais, o que impossibilitou que Paola compreendesse a natureza de violência sexual dos abusos que sofreu. Atentou-se, também, ao caráter interseccional e estrutural da discriminação e da violência, em razão da idade e do gênero da vítima.
Foto: ReproRights/Opera Mundi
Diante disso, a Corte declarou a responsabilidade internacional do Estado do Equador pelo descumprimento dos deveres de respeito e garantia ao direito da criança de uma vida livre de violência sexual no âmbito educativo.[2] O Estado faltou com sua obrigação de respeito, visto que o vice-reitor violentou Paola no exercício de sua função pública, e devido à tolerância dos demais funcionários da escola em relação a tais abusos. A violação do dever de garantia, por sua vez, se deu pela falta de adoção de medidas para a prevenção e tratamento dos atos de violência sexual no âmbito escolar.
A Corte também condenou o Estado pela violação às garantias judiciais e à proteção judicial, em relação à igualdade perante a lei, nos processos penais e administrativos e, por fim, pela violação à integridade pessoal das familiares da vítima.[3] Considerou-se que o Equador não tomou as devidas diligências em um prazo razoável, sendo que o próprio Estado reconhecera que seus agentes não agiram para localizar o vice-reitor, o que acabou levando à prescrição dos processos penais. Assim, conclui-se também que os familiares de Paola tiveram suas integridades psíquicas e morais lesionadas.
É perceptível, portanto, que o caso dialoga com muitas questões atuais no que se refere à educação sexual, proteção dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, interseccionalidade e violência institucional. Além de reforçar precedentes importantes no que tange à proteção das mulheres, meninas e adolescentes e seu direito à educação – como o caso Gonzalez Lluy vs. Equador –, e dos direitos reprodutivos e sexuais – como no caso I.V. vs. Bolívia ou caso Artavia Murillo e outros vs. Costa Rica –; traz questões sobre educação sexual e violações de meninas e crianças no contexto educacional.
Embora o caso traga muitas inovações e verse sobre diversos aspectos dos direitos sexuais e reprodutivos, o foco do texto será, principalmente, a relação destes com a educação sexual, pois apresenta grande pertinência e relação com o atual contexto brasileiro.
Nesse sentido, em informe de 2019 realizado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) intitulado “Violência e discriminação contra mulheres, meninas e adolescentes: boas práticas e desafios na América Latina e Caribe”, está mencionada a relação direta entre o direito à educação das crianças e adolescentes e a possibilidade de gozar de uma vida digna. Mas, ao mesmo tempo, os centros educativos, tanto públicos como privados, podem se converter em espaços de vulnerabilização de direitos.
Assim, tais violências e discriminações podem se dar por diversas formas, desde castigos corporais e bulliyng, até violência sexual, frequentemente invisibilizada. No Peru, por exemplo, entre 2013 e 2018, se registraram 2.262 casos de violência sexual em instituições educativas do país (idem, p. 137). No Brasil, de 2008 a 2019, mais de 550 mulheres foram vítimas de violência sexual apenas nas universidades, sem considerar escolas primárias e subnotificações. Os Estados, portanto, devem implementar políticas e mecanismos de atenção e respostas a estas situações, com investigações eficazes e garantindo a continuidade dos estudos.
Foto: Center for Reproductive Rights e CEPAM Guayaquil/BBC.
A CIDH também reforçou a necessidade dos Estados de garantir os serviços de saúde sexual e reprodutiva de mulheres e meninas no contexto da pandemia de COVID-19, pois esta aprofunda as vulnerabilidades existentes pela desigualdade histórica e estrutural.
Nesse sentido, direitos sexuais e reprodutivos englobam a integridade psicofísica dos corpos, o direito de escolha de ter e não ter filhos, liberdade sexual e de gênero, e os deles decorrentes, como educação sexual e saúde. Apesar de existirem diversos exemplos nacionais que se assemelham ao caso Guzmán,[4] um caso recente foi o de uma menina de 10 anos que engravidou, estuprada pelo próprio tio durante 4 anos. Ao tentar realizar um aborto legalmente previsto, teve que realizar o procedimento em outro estado, com conservadores às portas do hospital a chamando de assassina.
Por este motivo, e considerando a contemporaneidade da questão, reforça-se a importância da educação para diminuir a transmissão de doenças e a gravidez precoce, bem como para que crianças reconheçam os limites dos outros quanto aos seus corpos e à sua privacidade.
No entanto, conforme já mencionado, emerge no Brasil uma onda conservadora contra a iniciativa de educação sexual, tanto na arena internacional quanto no âmbito interno, cujas manifestações vão da mobilização do Estado brasileiro na ONU contra as resoluções sobre os direitos das mulheres ao caricato movimento “Escola sem Partido”, que atuava sob o pretexto de que de haveria doutrinação em relação à identidade de gênero.
A reafirmação dos direitos sexuais e reprodutivos por uma Corte Internacional de Direitos Humanos é um importante avanço frente a tantos retrocessos. Enquanto direitos humanos, os direitos sexuais e reprodutivos de meninas, adolescentes e mulheres devem ser respeitados em todas as suas dimensões: anteriormente, na forma de educação e prevenção; durante o seu exercício, como no debate sobre consentimento, saúde sexual e pré-natal; bem como posteriormente, como a superação de estereótipos ou, em caso de violação, das devidas responsabilidades criminais e demais cabíveis.
*Catarina Ramos é mestranda em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e Paula Alvarez é graduanda em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Ambas são pesquisadoras do Núcleo de Estudos em Sistemas de Direitos Humanos da Universidade Federal do Paraná (NESIDH-UFPR).
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[1] Cumpre ressaltar que, no entendimento da Corte, a violência sexual contra as mulheres e meninas compreende não apenas atos que se exerçam mediante violência física, mas também outros atos de natureza sexual os quais, mesmo que cometidos por outros meios, sejam igualmente lesivos aos seus direitos e lhe causem igual dano e sofrimento (Corte IDH, Caso Guzmán... op. cit., par. 124). [2] A Corte condenou o Estado pela violação, em relação à vítima Paola del Rosario Guzmán Albarracín, aos arts. 4.1 (direito à vida), 5.1 (direito à integridade pessoal) e 11 (direito à proteção da honra e dignidade) da Convenção Americana de Direitos Humanos e art. 13 do Protocolo de San Salvador (direito à educação), todos em relação aos arts. 1.1 (obrigação de respeitar e garantir direitos sem discriminação) e 19 (direitos das crianças) da Convenção Americana de Direitos Humanos. Além do descumprimento da obrigação de prevenir atos de violência contra a mulher, contida nos arts. 7.a, 7.b e 7.c da Convenção de Belém do Pará. [3] A Corte conclui também que o Estado era responsável - em prejuízo Petita Paulina Albarracín Albán, mãe de Paola, e de Denisse Selena Guzmán Albarracín, irmã de Paola - pela violação aos arts. 8.1 (garantias judiciais) e 25.1 (proteção judicial) da CADH, em relação aos arts. 24 (igualdade perante e lei), 2 (dever de adotar disposições de direito interno) e 1.1 do mesmo instrumento, como também em relação ao art. 7.b da Convenção de Belém do Pará (dever de investigar com devida diligência os casos de violência contra a mulher). Houve também violação ao art. 5.1 da CADH (integridade pessoal) em relação aos familiares de Paola. [4] No ano passado, um professor foi acusado pelo estupro de 9 meninas nos três anos anteriores, por exemplo. (HENRIQUE, Alfredo. Professor de religião é acusado pelo estupro de nove meninas. Folha de S. Paulo, São Paulo, publicação eletrônica de 10 de outubro de 2019. Disponível em: https://agora.folha.uol.com.br/sao-paulo/2019/10/professor-de-religiao-e-acusado-pelo-estupro-de-nove-meninas.shtml. Último acesso: 15/09/2020).
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