*Por Ellen Akemy Kuroce
Foto: Caracas, Venezuela, 2017 / Joris van Gennip/GroundTruth.
No dia 03 de novembro de 2021, o Promotor do Tribunal Penal Internacional (TPI), Karim Khan, anunciou que irá formalmente investigar a possível ocorrência de crimes contra a humanidade na Venezuela. O país, primeiro do continente americano a ser investigado formalmente pelo TPI, já estava sob investigação preliminar desde fevereiro de 2018, em razão de acusações de uso excessivo de força policial e detenção arbitrária em protestos ocorridos desde 2017, contra o governo de Nicolás Maduro.
Após uma visita à Venezuela, Karim Khan assinou uma carta junto a Nicolás Maduro para facilitar a cooperação e assistência mútua entre as partes para garantir a responsabilização por eventuais crimes tutelados pelo Tribunal. A carta reconhece que durante a investigação preliminar iniciada em 2018 nenhum suspeito ou alvo foi identificado e que o objetivo da investigação é determinar a verdade e se há ou não motivos para abrir acusações contra qualquer pessoa.
Apesar de entender que os requisitos para iniciar a fase de investigação previstos no Artigo 53 do Estatuto de Roma não estariam presentes e que denúncias deveriam ser investigadas pelo próprio governo através de instituições nacionais existentes para esse fim, sem a necessidade de intervenção de tribunais internacionais, Maduro declarou que respeita a decisão da Procuradoria do TPI e que as portas da Venezuela estão abertas, se o fim é garantir justiça.
Juan Guaidó, autoproclamado presidente interino da Venezuela desde 2019, pronunciou-se positivamente sobre a investigação em sua conta oficial no Twitter, afirmando que a atitude adotada pelo TPI irá permitir às vítimas e às suas famílias a justiça que não foi garantida pelo governo venezuelano.
A crise na Venezuela – 2017 a 2021
Desde abril de 2017, a Venezuela sofre um cenário de instabilidade política que inclui uma onda de protestos contra o governo do então presidente Nicolás Maduro. O movimento se iniciou após acusações da oposição de que Maduro estaria promovendo um golpe de estado ao conferir as atribuições da Assembleia Nacional à Suprema Corte da Venezuela e ao limitar imunidades parlamentares.
Foto: Manaure Quintero/Reuters.
Em resposta às manifestações, forças policiais venezuelanas passaram a utilizar a força para dispersar e reprimir os protestos, deixando mortos e feridos ao colocar prática o chamado “Plano Zamora”. Além disso, milhares de manifestantes teriam sido arbitrariamente detidos por forças do governo, sendo submetidos a graves abusos e maus-tratos. Alguns grupos de apoiadores do governo teriam sido ainda instruídos pelas forças governamentais a recorrerem a meios violentos contra os opositores de Maduro.
Em meio às manifestações de preocupação da Organização dos Estados Americanos (OEA) quanto à crise venezuelana, Nicolás Maduro tornou a situação ainda mais instável ao determinar, ainda em abril de 2017, que o governo venezuelano iniciaria o processo de retirada do país da Organização. No mês seguinte, Maduro anunciou publicamente seus planos de substituir a Assembleia Nacional por uma Assembléia Nacional Constituinte para redigir uma nova constituição venezuelana.
A Assembleia Nacional Constituinte proposta por Maduro foi de fato instaurada e seus membros, de maioria governista, foram eleitos no final de julho de 2017. Apesar das críticas da oposição, em outubro do mesmo ano foram realizadas eleições regionais, nas quais novamente foram eleitos governadores majoritariamente alinhados a Nicolás Maduro.
Em maio de 2018, foram realizadas eleições presidenciais na Venezuela, nas quais Maduro foi reeleito para um segundo mandato de seis anos, com 67,7% dos votos. Diante da conturbada eleição de Maduro, à qual são atribuídas fraudes e irregularidades, 14 países latino-americanos e o Canadá pronunciaram-se no sentido de não reconhecer o resultado eleitoral, sob o argumento de que não teriam sido respeitados procedimentos próprios de um processo democrático, livre, justo e transparente.
No início de 2019, Juan Guaidó, recém-eleito presidente da Assembleia Nacional formalmente extinta por Maduro em 2017, convocou novas manifestações populares pela saída de Nicolás Maduro. Em uma das manifestações, Guaidó foi aclamado presidente interino da Venezuela. Mais de 60 Estados, incluindo EUA, Brasil, França e Reino Unido reconheceram, desde então, Guaidó como presidente interino da Venezuela; outros 50 Estados membros da ONU, por outro lado, continuam a reconhecer o governo do presidente Maduro, incluindo China, Rússia, Turquia e Irã.
Em meio ao cenário de instabilidade política, a Venezuela sofre com grave crise econômica que tem levado à escassez de itens básicos, o que tem originado a crise migratória na qual mais de 4 milhões de venezuelanos haviam deixado o país em direção aos vizinhos somente até 2019.
Os possíveis crimes contra a humanidade
A investigação conduzida pela Procuradoria do TPI visa avaliar a ocorrência de supostos crimes contra a humanidade cometidos por agentes das forças policiais venezuelanas desde 2017. Até o momento, as fiscalizações indicam que as organizações policiais supostamente envolvidas nos crimes incluiriam: a Polícia Nacional Bolivariana; o “Servicio Bolivariano de Inteligencia Nacional”; a “Dirección General de Contrainteligencia Militar”, a “Fuerza de Acciones Especiales”, o “Cuerpo de Investigaciones Científicas, Penales y Criminalísticas”, a “Guardia Nacional Bolivarian”, o “Comando Nacional Antiextorsión y Secuestro” e outras unidades das Forças Armadas Venezuelanas.
Foto: Michel Porro/Getty Images.
Os possíveis crimes contra a humanidade atualmente investigados pela Procuradoria dizem respeito ao cometimento generalizado ou sistemático de homicídio, privação de liberdade, tortura, além de crimes sexuais e de gênero contra populações civis, todos expressamente previstos pelo artigo 7º do Estatuto de Roma.
Segundo dados apresentados pela Procuradoria do TPI, mais 100 pessoas teriam sido mortas e milhares teriam sido feridas em ações dos membros das forças de segurança do governo venezuelano ou por grupos apoiadores coordenados pelo Estado. Ainda, mais de 7.000 pessoas teriam sido detidas pelas autoridades desde 2017 por motivos políticos. A maioria foi libertada após ser submetida a violência, tortura, maus tratos e violações ao devido processo legal - 700 civis, por exemplo, foram julgados por tribunais militares.
A Procuradoria do TPI menciona em seus relatórios que informações sobre a duração da maioria das detenções não foram disponibilizadas pelo Estado venezuelano, assim como informações sobre supostos casos de desaparecimento forçado de indivíduos supostamente detidos pelas forças de segurança venezuelanas.
Sobre os crimes sexuais e de gênero ocorridos no contexto dos protestos, há denúncias de incidentes de estupro e agressão sexual a homens e mulheres detidos por forças de segurança. Contudo, o TPI revelou que não possui dados suficientes para estimar a escala na qual essa conduta foi praticada.
Possíveis desfechos da investigação da Procuradoria do TPI
Por ter ratificado o Estatuto de Roma em 07 de julho de 2000, a Venezuela está formalmente submetida à jurisdição do Tribunal Penal Internacional para verificação de crimes internacionais cometidos em seu território ou por seus nacionais.
Iniciada a investigação e consideradas as questões de jurisdição, admissibilidade e interesses da justiça pelo Promotor Karin Khan, cabe a ele decidir se há ou não fundamentos ou para levar ao caso ao Tribunal. Caso entenda pela existência de motivos para apuração penal, a fase de procedimento criminal será instaurada.
Caso, por outro lado, a Procuradoria entenda pela ausência de elementos suficientes para a sequência do processo no Tribunal Penal Internacional, Karim Khan comunicará a decisão de não proceder à fase criminal ao juízo de instrução e aos países que apresentaram o caso ao tribunal.
*Ellen Akemy Kuroce é técnica da International Humanitarian Law Clinic da UFRGS, pesquisadora do Núcleo de Estudos em Tribunais Internacionais da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (NETI-USP) e graduada em Direito pelo Centro Universitário Antônio Eufrásio de Toledo.
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