Por Luiza Fernandes*
Foto: Fabiano Rocha / O Globo
O Projeto de Lei 882/19, apresentado pelo presidente do Brasil Jair Bolsonaro ao Congresso Nacional em novembro de 2019, define situações nas quais militares e agentes de segurança podem ser isentos de punição pelo cometimento de atos proibidos por lei - como matar. Tal projeto também visa acrescentar o seguinte parágrafo ao artigo 23 do CP: “o juiz poderá reduzir a pena até a metade ou deixar de aplicá-la se o excesso decorrer de escusável medo, surpresa ou violenta emoção”.
O excludente de ilicitude, já previsto no Código Penal Brasileiro (CP) em seu artigo 23 trata da exclusão de culpabilidade de condutas ilegais em circunstâncias que ocorrerem, conforme a redação do artigo, “em estado de necessidade; em legítima defesa; em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito”. Não obstante, o artigo também versa sobre o excesso doloso ou culposo, dizendo que o agente responderá criminalmente por estes.
Atualmente, o PL 889/2019 encontra-se sujeito à apreciação do Plenário, tendo sido apensado ao PL 2600/2015 como substitutivo, alterando a proposta do projeto mais antigo em seu conjunto, substancial ou formalmente e tendo preferência na votação, mas podendo ser rejeitado em favor do projeto original. Muitas críticas feitas ao projeto alegam que ele seria uma justificativa para que policiais possam matar, inclusive fazendo uso do “excesso” contido no novo parágrafo da proposta.
O Direito Internacional Humanitário (DIH) aplica-se apenas em tempos de conflitos armados e por isso não se encaixaria no caso brasileiro, o que evidencia a não aplicabilidade do status de combatentes e da ideia de que essas pessoas podem cometer infrações sem serem penalizadas por seus atos. Por outro lado, os direitos humanos são sempre aplicados, fazendo com que tal conduta proposta no projeto seja proibida perante o Direito Internacional dos Direitos Humanos (DIDH), por violar princípios básicos de humanidade.
Assim, o texto vai contra a legislação brasileira de direitos humanos e também contra o direito internacional dos direitos humanos e leis costumeiras internacionais; o artigo 6 do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (PIDCP), do qual o Brasil é parte, nesse sentido, reconhece o direito inerente de toda pessoa à vida, acrescentando que esse direito "será protegido pela lei" e que "ninguém será arbitrariamente privado da vida".
O excludente de ilicitude e as normas internacionais de direitos humanos
De acordo com o Comentário Geral No. 36 do artigo 6º do PIDCP, o direito à vida é um direito que não deve ser interpretado de forma restrita. Refere-se ao direito dos indivíduos de estarem livres de atos e omissões que se destinam a, ou que podem causar, sua morte não natural ou prematura. O artigo 6º garante esse direito a todos os seres humanos, sem distinção de qualquer espécie, inclusive aos suspeitos ou condenados até mesmo pelos crimes mais graves. Ademais, o parágrafo 1º do artigo 6º do Pacto estabelece que ninguém pode ser arbitrariamente privado de sua vida e que o direito deve ser protegido por lei, estabelecendo as bases para a obrigação dos Estados Partes de respeitar e garantir o direito à vida, de torná-lo efetivo por meio de medidas legislativas, dentre outras, e de proporcionar recursos e reparação eficazes a todas as vítimas de violações do direito à vida.
A proibição contra a privação arbitrária da vida possibilita o uso de força letal em legítima defesa; porém, mesmo medidas excepcionais que conduzem a privações de vida que não são arbitrárias devem ser aplicadas de uma maneira que não seja, de fato, arbitrária. Tais medidas excepcionais devem ser estabelecidas por lei e acompanhadas de salvaguardas institucionais eficazes e destinadas a prevenir privações arbitrárias de vida, o que não é de forma alguma abarcado no novo projeto de lei, já que ele permitiria tal arbitrariedade, além de não prever medidas de fiscalização e punição da conduta de militares e agentes de segurança.
A noção de "arbitrariedade" não deve ser vista apenas em ações que claramente sejam "contra a lei", mas deve ser interpretada de forma mais ampla para incluir elementos de inadequação, injustiça, falta de previsibilidade e devido processo legal, bem como elementos de razoabilidade, necessidade e proporcionalidade. Para não ser qualificada como arbitrária nos termos do artigo 6º, a aplicação de força potencialmente letal por um particular agindo em legítima defesa, ou por outra pessoa que venha em sua defesa, deve ser estritamente necessária em vista da ameaça representada pelo atacante.
Foto: Mauro Pimentel / AFP
O uso da força letal deve representar um método de último recurso, depois que outras alternativas tenham sido esgotadas ou consideradas inadequadas. Ainda, a quantidade de força aplicada não pode exceder a quantidade estritamente necessária para responder à ameaça, sendo que ela deve ser dirigida cuidadosamente apenas contra o atacante e a ameaça respondida deve envolver morte iminente ou lesões graves. O uso de força potencialmente letal para fins de aplicação da lei é uma medida extrema, que deve ser recorrida apenas quando estritamente necessária para proteger a vida ou prevenir ferimentos graves de uma ameaça iminente.
Além disso, pode-se perceber que o projeto de lei em questão escusa atos de alegada “legítima defesa” ampliando o seu uso por militares e agentes de segurança, porque estes poderiam cometer infrações e alegar legítima defesa sem que uma verdadeira investigação sobre proporcionalidade no uso letal da força seja conduzida.
Assim, por argumentar que militares e policiais podem cometer crimes e não ser julgados, pode-se traçar um paralelo com o projeto de lei e o DIH, também chamado de Direito Internacional do Conflito Armado, já que, dentro dele, pressupõe-se a legalidade do uso letal da força, porque se espera que as forças militares usem força letal, ou potencialmente letal, em uma variedade de contextos, desde operações de combate contra o adversário, até a manutenção da lei e da ordem, ou resposta a ameaças iminentes à vida ou integridade física, em situações de conflito armado. Já em tempos de paz, aplica-se apenas o DIDH e diferentes regimes jurídicos e “paradigmas” que regem o uso da força, já que o uso letal dela deve ser o último recurso e, quando uma morte ocorre, a presunção deve ser de que o direito à vida foi violado.
O uso de força letal na aplicação da lei e o DIH
Do ponto de vista do direito internacional, o uso da força pelas forças armadas e funcionários responsáveis pela aplicação da lei é regido por dois paradigmas diferentes: o paradigma da conduta das hostilidades, derivado do DIH, e o paradigma da aplicação da lei, principalmente derivado do DIDH.
Nessa perspectiva, é importante mencionar que, dentro do DIH, existe a categoria de combatente, que, de acordo com o Protocolo Adicional I das Convenções de Genebra de 1954 (PA I), é dada a indivíduos que participam diretamente das hostilidades durante um conflito armado, sendo que o artigo 43 do PA I afirma que tal status é preenchido quando essas pessoas são parte de forças armadas pertencentes a uma das partes do conflito e que essas devem possuir um comando responsável e estar sujeitas a um sistema disciplinar interno. Os combatentes podem matar enquanto partes do conflito armado, sendo alvos legítimos e tendo permissão para fazer uso de força letal contra outros combatentes e não serem processados por tais atos; porém, mesmo sob tal legalidade, os atos ainda devem ser proporcionais e não excessivos. Com tal previsão, fica claro que a proposta parece visar que tais policiais e militares seriam parte das forças armadas de uma parte do conflito, sendo, então, combatentes, e que estariam no direito de cometer hostilidades sem serem julgados por tais atos, como aconteceria em tempos de conflito armado.
Foto: Mario Ângelo/AE/VEJA
Contudo, o que na verdade ocorre em tempos de paz, ou pelo menos deveria, são apenas operações de lei e ordem (do inglês law enforcement operations), que não tem a intenção de destruir o inimigo visando uma vantagem militar definitiva, como acontece na condução de hostilidades em tempos de guerra (do inglês conduct of hostilities), mas sim apenas a manutenção da ordem pública e segurança, através da prevenção e detecção de crime. Dessa forma, o uso letal da força só seria permitido em casos de extrema necessidade, sendo que a prevenção e captura devem estar de acordo com os meios legais a serem usados contra infratores da lei pelas forças armadas e policiais.
O PL 889/2019 e a proteção dos direitos humanos nas mãos do Congresso Nacional
O PL 889/2019 aguarda votação do Congresso Nacional, podendo fazer com que o excludente de ilicitude para tais casos seja uma verdadeira isenção de investigação e punição de policiais que cometeram assassinatos, sendo visto por críticos como uma licença para matar. Em um país como o Brasil, no qual a taxa de letalidade policial já é uma das maiores do mundo, seria absurda a admissão de tal proposta.
*Luiza Fernandes é graduanda em direito pela UFRGS e coordenadora acadêmica da UFRGS IHL Clinic.
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Referências:
AMNESTY INTERNATIONAL, Police Violence Around the World, disponível em: https://www.amnestyusa.org/issues/deadly-force-police-accountability-police-violence/
G1, Leia a íntegra do projeto de Bolsonaro que isenta militares de punição em operações de GLO, disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2019/11/21/leia-a-integra-do-projeto-sobre-excludente-de-ilicitude-proposto-por-bolsonaro.ghtml; Gaggioli, Gloria, The Use of Force in Armed Conflicts: Conduct of Hostilities, Law Enforcement and Self-Defense (2018). Complex Battlespaces: The Law of Armed Conflicts and the Dynamics of Modern Warfare, 2018, Available at SSRN: https://ssrn.com/abstract=3559481; General comment No. 36 (2018) on article 6 of the International Covenant on Civil and Political Rights, on the right to life; International Covenant on Civil and Political Rights, disponível em: https://www.ohchr.org/en/professionalinterest/pages/ccpr.aspx; Protocolo Adicional I das Convenções de Genebra de 1949, disponível em: https://ihl-databases.icrc.org/ihl/INTRO/470
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