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Suspensão de direitos em tempos pandêmicos: o que diz o direito internacional dos direitos humanos?

*Por Bruna Nowak

Foto: UN Photo/Elma Okic


A pandemia de Covid-19 tem sido caracterizada como um estado de calamidade ou emergência. Em virtude das medidas drásticas que o momento exige com vistas à contenção da disseminação do vírus, estaria autorizada, excepcionalmente, a suspensão do exercício de alguns direitos. Para além das Constituições dos Estados, os tratados internacionais em matéria de direitos humanos permitem a derrogação de direitos em contextos como o atual – e alguns Estados têm se valido desta possibilidade.


O Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos da ONU (1966), conhecido como um dos tratados que compõem a “Carta Internacional de Direitos Humanos”, prevê, em seu artigo 4º, que, em situações excepcionais que “ameacem a existência da nação”, os Estados poderão adotar medidas que suspendam obrigações decorrentes do Pacto, desde que tais medidas não sejam incompatíveis com outras obrigações de Direito Internacional, nem discriminatórias por motivos de raça, cor, sexo, língua, religião ou origem social.


Nem todos os direitos, portanto, podem ser derrogados. A este respeito, o PIDCP é claro ao dispor a proibição da suspensão do direito à vida (artigo 6º), a proibição da tortura (artigo 7º), a proibição à escravidão e à servidão (artigo 8º), a proibição da prisão por descumprimento de obrigação contratual (artigo 11), do princípio da legalidade, do direito ao reconhecimento da personalidade jurídica (artigo 16) e do direito à liberdade de pensamento, consciência e religião (artigo 18).


Ainda, não são passíveis de suspensão as obrigações que visam à abolição da pena de morte, nos termos do Segundo Protocolo Facultativo ao PIDCP. O Comitê de Direitos Humanos da ONU, órgão de supervisão do PICDP, em seu Comentário Geral 29 de 2001, estabeleceu que o dever de reparar violações aos direitos tutelados pelo Pacto, fixado em seu artigo 2.3, também é inderrogável porque constitui obrigação inerente ao tratado como um todo.


O Comitê também destaca que estes direitos inderrogáveis estão relacionados às obrigações decorrentes de normas peremptórias do Direito Internacional (jus cogens) e ao fato de que não há necessidade de se suspender certos direitos mesmo em situações excepcionais – como, por exemplo, o direito a um julgamento justo.


Por seu turno, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (1969), tratado basilar do Sistema Interamericano de Direitos Humanos, contém dispositivo semelhante. Seu artigo 27 estabelece que, em casos de guerra, perigo público, ou outra emergência que ameace “a independência ou segurança do Estado parte”, este poderá, na medida do que for estritamente necessário, suspender obrigações contraídas em virtude da Convenção.


Ainda segundo a Covnenção, é vedada a suspensão dos direitos ao reconhecimento da personalidade jurídica (artigo 3º), à vida (artigo 4º), à integridade pessoal (artigo 5º), à proibição da escravidão e servidão (artigo 6º), ao princípio da legalidade e da retroatividade (artigo 9º), à liberdade de consciência e de religião (artigo 12), à proteção da família (artigo 17), ao nome (artigo 18), aos direito da criança (artigo 19), ao direito à nacionalidade (artigo 20), aos direitos políticos (artigo 23), e das garantias indispensáveis à proteção de tais direitos.


Foto: Corte Interamericana de Direitos Humanos


A jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) é bastante rica sobre a temática. Entende-se que, embora o artigo 7º da CADH (direito à liberdade pessoal) não integre o rol dos direitos explicitamente inderrogáveis do artigo 27, a proibição da privação arbitrária de liberdade não é suscetível de suspensão, mesmo em casos de detenção por razões de segurança pública. Ainda, qualquer privação de liberdade deve ser devidamente registrada, contendo o momento e as causas de detenção, quem a realizou e a confirmação de notificação da autoridade judicial competente.


Também em sua Opinião Consultiva nº 8, de 1987, a Corte IDH foi bastante enfática ao concluir que o habeas corpus e o recurso de amparo (remédio constitucional equivalente ao mandado de segurança) são garantias judiciais indispensáveis para a proteção dos direitos cuja suspensão está vedada pelo artigo 27, vez que se prestam a assegurar a legalidade em sociedades democráticas.


Na hipótese de suspensão de direitos, os Estados devem informar as demais partes das convenções por meio de comunicação dirigida ao Secretário Geral da ONU, no caso do PIDCP, e ao Secretário Geral da OEA, no caso da CADH. Tais declarações devem indicar os motivos da derrogação, as disposições cuja aplicação tenha sido suspendida, o limite temporal e a delimitação territorial da suspensão. O PIDCP também determina que os Estado apresentem nova declaração para informar o término da suspensão.


Até a conclusão deste artigo, 18 dos 173 Estados Partes do PIDCP submeteram declarações de suspensão de direitos ao Secretário Geral da ONU, e 13 dos 25 Estados Partes da CADH o fizeram ao Secretário Geral da OEA, todas com fulcro na necessidade de combate ao coronavírus.


Em relação ao PIDCP, as comunicações dos Estados informaram sobre a suspensão dos seguintes artigos: 9º (direito à liberdade e à segurança pessoais), 12 (liberdade de circulação e residência), 13 (proibição da expulsão de estrangeiro, exceto por razões imperativas de segurança nacional), 17 (direito à vida privada, familiar, ao domicílio e à inviolabilidade de correspondência), 19 (liberdade de expressão e opinião), 21 (direito de reunir-se pacificamente), 22 (direito à liberdade de circulação).


É interessante observar que a Etiópia é o Estado que decretou um estado de emergência durante período mais prolongado (5 meses) e destacou que, para além da suspensão dos direitos à liberdade de movimento, de reunião e de manifestação de crenças religiosas, também foi derrogado o direito de visita às pessoas privadas de liberdade.


Quanto à CADH, as declarações com base no artigo 27 contêm justificativas bem fundamentadas, além da delimitação territorial e temporal das medidas. Quase a totalidade das suspensões foi aplicada nos respectivos territórios nacionais como um todo. As comunicações não esclareceram quais artigos da CADH teriam sido derrogados, veiculando apenas as normas internas. Neste ponto, é interessante comentar que as declarações publicadas no sítio eletrônico da OEA são acompanhadas dos atos normativos aprovados internamente pelos Estados, ao passo que, em relação à ONU, somente as comunicações dos Estados dirigidas à Organização estão disponíveis para consulta.


Os direitos cujo exercício foi suspenso concernem à liberdade de trânsito e locomoção, à liberdade de associação e reunião, à inviolabilidade de domicílio. El Salvador também derrogou o direito a não ser obrigado a mudar de domicílio. O Estado que institui emergência pelo período mais longo de tempo foi o Chile (noventa dias, prorrogáveis por igual período). Inusitadamente, a República Dominicana, além de ter mencionado a suspensão dos direitos previstos nos artigos 15, 16 e 22 da CADH, também informou a derrogação do direito à liberdade de associação disposto no artigo 4º da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará), embora o tratado não contenha cláusula que autorize a suspensão do exercício de direitos.


Foto: Organização dos Estados Americanos


Alguns Estados foram além da informação sobre derrogações de artigos da CADH. O Equador comentou sobre a recessão econômica que se instaurou por conta da pandemia e apresentou algumas medidas necessárias para contê-la. A Colômbia é o Estado que mais apresentou comunicações à OEA, as quais informam sobre as prorrogações de suspensões de direitos e veiculam leis e atos normativos aprovados para enfrentar o estado de emergência econômica, social e ecológica. O país também apresentou à Organização as políticas públicas adotadas, como medidas tributárias e programas para conter a evasão escolar durante a pandemia. Por sua vez, o Paraguai informou sobre o levantamento gradual das medidas de distanciamento, denominado de quarentena inteligente.


Das declarações analisadas, verifica-se que não é usual que os Estados explicitem quais artigos da CADH são objeto de derrogação. A Argentina, tal qual o Peru, fez referência ao regime estabelecido pelo artigo 27, mas se restringiu a comentar sobre os direitos previstos em sua Constituição.


Além destas questões formais, alguns Estados não se ativeram aos limites materiais ditados pelo Sistema Interamericano para a suspensão de direitos. O Chile, por exemplo, anunciou que as forças armadas assumiram o comando da ordem e da segurança pública durante o período emergencial, ainda que a jurisprudência da Corte IDH seja enfática quanto ao extremo cuidado que os Estados devem ter ao utilizar as forças armadas como elemento de controle de distúrbios internos, violência, situações excepcionais e criminalidade comum, haja vista que seu treinamento é voltado ao uso da força em conflitos armados.

Como poucos Estados apresentaram declarações de suspensão de direitos neste momento pandêmico, surgem questionamentos sobre a relevância de fazê-lo. Em termos de responsabilização internacional do Estado por violações de direitos humanos, algumas considerações merecem destaque.


Tanto a Corte IDH quanto o Comitê de Direitos Humanos da ONU entendem que as comunicações que informam a derrogação de direitos viabilizam a análise de juridicidade das medidas adotadas pelos Estados para o enfrentamento das circunstâncias excepcionais. As declarações permitem que os órgãos apreciem a necessidade e a proporcionalidade das suspensões, justamente porque critérios objetivos devem ser observados, como as limitações temporal e territorial, a justificativa e as disposições convencionais derrogadas.


Na prática, o que se observa é que, caso os Estados optem por não efetuar as declarações, estes se valem do próprio regime jurídico internacional para aplicar medidas de restrição a direitos. Isto porque, o próprio conteúdo de certos direitos comporta restrições ou limitações, independentemente da existência (e da comunicação) de um estado de emergência.


Em seu Comentário Geral 29, o Comitê de Direitos Humanos da ONU ressaltou que a possibilidade de se restringir alguns direitos protegidos no PIDCP, como as liberdades de movimento e de reunião, seria suficiente inclusive em contextos emergenciais, não sendo necessário recorrer à derrogação. Isto se justificaria pelo fato de que o próprio texto dos tratados de direitos humanos prevê a possibilidade de limitações, como os artigos 12.3, 15, 16.2 e 22.3 da CADH e 12.3, 18.3, 19.3, 21 e 22.2 do PIDCP.


Foto: ONU/Jean-Marc Ferré


Assim como as declarações de derrogação, as restrições de direitos devem seguir alguns critérios. A Corte IDH já estabeleceu que um direito pode ser limitado sempre que tais ingerências não sejam abusivas, arbitrárias ou discricionárias. Tais restrições devem estar previstas em lei, perseguir uma finalidade legítima – como a garantia da segurança nacional, da ordem pública, da saúde pública ou dos direitos e liberdades individuais (?) – e cumprir com os requisitos de idoneidade, necessidade e proporcionalidade em uma sociedade democrática.


Comparativamente, pode-se afirmar que as derrogações teriam, formalmente, um papel limitado, haja vista que se circunscrevem a situações excepcionais. Ainda, pressuporiam um escrutínio interno, pois dependem da configuração de um estado de emergência. Entretanto, ao se considerar os critérios que devem ser observados para as restrições de direitos, conclui-se que não são tão diferentes daqueles exigidos para as decretações de suspensões de direitos. Em eventual averiguação de responsabilidade internacional do Estado por violações a direitos humanos, a análise de juridicidade se seguirá quer tenha o Estado formulado a declaração de suspensão de direitos e informado ao respectivo órgão de monitoramento, quer tenha o Estado apenas se valido da prerrogativa de restringi-los.


Certamente, a apuração de responsabilidade internacional varia caso a caso. Vale mencionar que, na decisão em Baena Ricardo v. Panamá, a Corte IDH decidiu que a falta de uma declaração de estado de emergência impossibilitaria o Estado de suscitar a existência de referida situação excepcional. Isto levou a Corte a analisar as alegadas violações de direitos sem considerar o regime jurídico do artigo 27 da CADH. No caso Zambrano Vélez e Outros v. Equador, a Corte entendeu que o descumprimento do dever de informação insculpido no artigo 27.3 acarreta a violação deste dispositivo.


As declarações de estado de emergência visam equilibrar a tutela de direitos e a proteção de interesses nacionais em momentos de crise. Mediante a explícita derrogação do exercício de direitos, observando-se as limitações materiais, objetiva-se frear abusos por parte dos Estados, a fim de que estes não se valham dos contextos autorizadores das derrogações como pretexto para violar direitos. Diante do contexto inusitado da pandemia de COVID-19, certo é que este instituto – ao lado das restrições a direitos humanos – demandará aperfeiçoamento por parte da ordem jurídica internacional.






*Bruna Nowak é mestra em Direitos Humanos e Democracia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e membro do Núcleo de Estudos em Sistemas de Direitos Humanos (NESIDH-UFPR).


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