Por Theo Scudellari, Giulia Romay e Hélio Pinto*
Foto: UN Photo/ICJ-CIJ/Frank van Beek / CIJ no primeiro dia das audiências do caso Armed Activities on the Territory of the Congo (Democratic Republic of the Congo v. Uganda), em 20 de abril de 2021.
O Observatório Cosmopolita para a Corte Internacional de Justiça (CIJ) vem produzindo uma série de textos referentes à jurisprudência da entidade sobre a proibição do uso da força nas relações internacionais, tendo como bases norteadoras a Carta das Nações Unidas (com especial referência ao artigo 2(4) ), o direito costumeiro e demais dispositivos de ordem internacional que discorrem sobre o tema. Desse modo, cabe compreender os marcos de cada julgamento da Corte sobre o uso da força para observar as formas pelas quais este fenômeno é analisado no âmbito internacional e quais as implicações existentes quando a força é empregada em determinadas situações e contextos.
Assim, a presente análise tem como objeto central o julgamento dos casos levados à CIJ pela República Democrática do Congo (RDC), sob a alegação de que outros três países, sendo eles Burundi, Ruanda e Uganda, teriam utilizado do recurso da força em seu território.
Para tanto, serão destacados os principais aspectos elencados pela ratio decidendi da Corte no julgamento do mérito dessa disputa, tal como os principais comentários da doutrina acerca do uso da força no direito internacional e das normas (explícitas e tácitas) vigentes para sua regulação a nível global. Assim, pretende-se alcançar uma exploração mais apurada acerca do impacto e da repercussão do uso da força nas relações internacionais.
Contextualização do caso
A década de 1990 ficou marcada por grandes instabilidades e conflitos na África Central, com destaque para os países mencionados na introdução, seja de maneira direta ou indireta. O principal caso foi o de Ruanda, que passou por um grande genocídio entre as etnias do país, Tutsis e Hutus, em 1994, com aproximadamente 800 mil mortes em pouco mais de 100 dias. A dimensão dos eventos levou a desdobramentos de grande alcance, uma vez que ampliou o número de refugiados, trouxe à tona uma maior preocupação com a questão das fronteiras e gerou novas conflitualidades étnicas. Além disso, nessa época pairava uma instabilidade política em toda a região, o que agravava a situação.
O próprio genocídio em Ruanda incidiu, posteriormente, em conflitos dentro do território da República Democrática do Congo, de maneira que o governo ruandês – composto por membros de etnia Tutsi, que assumiram após os eventos de extrema violência – acusou o governo congolês de incentivar e auxiliar as milícias Hutus (etnia que promoveu o genocídio), criando novas relações belicosas entre os grupos étnicos presentes nos países. O governo de Uganda, que apoiou a Frente Tutsi, também esteve presente em parte dessas relações instáveis, não obstante sendo o país alvo das principais denúncias da RDC na Corte, como apontado anteriormente.
A recorrência à Corte: perspectivas sobre a proibição do uso da força
Tendo em vista o breve retrospecto exposto anteriormente, tem-se as bases para compreender as ações de uso da força que se desenvolveram na década de noventa na região e culminaram com a recorrência do Congo à Corte, em 1999.
Como se sabe, a Carta ONU em seu artigo 2 (4), estabeleceu uma proibição quase completa do uso da força nas relações internacionais. No entanto, o uso da força ocorreu inúmeras vezes desde então, inclusive, em alguns casos, com expressa autorização do Conselho de Segurança da ONU. Assim, na maior parte dos casos de violação ao uso da força, discute-se acerca das exceções à vedação, contidas na própria Carta ONU:
A. Exceções expressas: (a) adoção de medidas contra Estados ex-inimigos na Segunda Guerra sem a autorização do Conselho de Segurança (artigos 53 (1), 77 e 107). Tornou-se obsoleta com a posterior admissão da Itália, Japão e Alemanha; (b) O Conselho de Segurança detém poder discricionário para recomendar ou comandar ações militares quando uma ameaça à paz ou ato de agressão ocorrer (arts. 39 e 42); (c) a autorização à autodefesa coletiva ou individual em caso de conflitos armados, enquanto o Conselho de Segurança não tenha tomado as medidas necessárias para manutenção da paz e segurança internacionais (art. 51).
B. Exceções implícitas: é possível afirmar que existem mais duas exceções na Carta, embora controvertidas. A primeira seria o procedimento denominado “Uniting for Peace”, adotado pela Assembleia Geral em 1950, mas nunca utilizado. A segunda, por sua vez, seria o direito dos “National Liberation Movements” para empregar todos os meios necessários em sua luta contra o colonialismo, regimes racistas ou ocupações estrangeiras, conforme a Resolução 3070 (1973).
No caso em análise, o Congo registrou um pedido de procedimento na CIJ contra Burundi, Ruanda e Uganda, por atividades pautadas no uso da força dentro de seu território, caracterizando-se como uma violação da Carta da ONU e da Carta da União Africana, solicitando, ainda, reparação pelos danos causados por tais ações, pormenorizadas no memorial da República Democrática do Congo. A pedido da própria RDC, os casos contra Ruanda e Burundi fossem retirados da solicitação em janeiro de 2001.
Assim, em julho de 2000, a RDC solicitou que todas as atividades militares dentro de seu território fossem encerradas, o que levou a CIJ a ordenar o fim das atividades belicosas por parte dos dois Estados de maneira a evitar consequências prejudiciais para ambas partes e dificultar uma escalada das hostilidades latentes. Enquanto isso, o governo de Uganda submeteu um contra-memorial, contendo duas contra-reivindicações: os atos de agressão cometidos alegadamente pela RDC no território de Uganda, bem como às estruturas e pessoal da cúpula diplomática em kinshasa, e aos nacionais Ugandeses. Ambas foram incorporadas ao caso.
A análise do caso e as conclusões da Corte
Foto: UN Photo/ICJ-CIJ/Frank van Beek / Membros da delegação de Uganda no primeiro dia das audiências do caso Armed Activities on the Territory of the Congo (Democratic Republic of the Congo v. Uganda), em 20 de abril de 2021.
Com a conclusão dos procedimentos iniciais de submissão à Corte, a análise das questões de mérito se iniciou em 2005. À priori, a CIJ analisou a invasão da RDC por parte de Uganda, observando que houve a presença das tropas militares ugandesas no território congolês sem o consentimento da RDC para tanto. Além disso, compreendeu que houve uma violação grave à proibição ao uso da força – Artigo 2(4) da Carta da ONU.
O governo ugandês, por sua vez, argumentou que se tratava de hipótese de legítima defesa, tese não acatada pela CIJ pela ausência de circunstâncias factuais e legais a autorizar o exercício do direito à autodefesa. A CIJ reconheceu que houve o financiamento e auxílio econômico, logístico e militar para tropas irregulares no território do Congo por um longo período de atividade, em desrespeito as normas do direito internacional.
Faz-se necessário mencionar que a Corte examinou se havia evidência suficiente para demonstrar que havia autoridade estabelecida e exercida pelo Estado interventor - Ruanda - exercida no território do Congo. A partir da análise de existência do denominado "occupying power”, entendeu-se que sim. Adicionalmente, sobre a responsabilização do Estado, a CIJ referenciou o costume internacional bem estabelecido, como posto no art. 91 do Protocolo I adicional à Convenção de Genebra de 1949, conforme o qual uma parte em um conflito militar será responsável por todos os atos de pessoas que integrem suas forças armadas.
Posteriormente, a Corte passou para a análise acerca da violação dos direitos humanos, de maneira que, considerando-se Uganda como ocupante na região de Ituri (no nordeste da República Democrática do Congo), o referido Estado deveria se colocar como responsável pela manutenção de um certo padrão da ordem e garantia de segurança civil, impedindo violações dos direitos humanos e do direito humanitário internacional. Contudo, como concluído pela Corte, estes requisitos não foram cumpridos, havendo uma quantidade significativa de evidências que apontavam para a violação de tais normas pelas próprias tropas ugandesas, sendo o Estado responsabilizado por essas ações. Desse modo, teve pouca dificuldade para incluir as atrocidades cometidas pelas forças armadas de Uganda contra civis no território ocupado do Congo nos artigos 27 e 32 da Convenção de Genebra IV.
Um outro tópico que demandou análise por parte dos juízes da Corte refere-se à pilhagem e exploração de recursos naturais congoleses por parte de tropas da chamada UPDF (Uganda’s People Defence Forces), inclusive oficiais que faziam vista grossa às ações supracitadas, isto é, permitindo que a extração e tomada desses recursos ocorresse. Deste modo, a CIJ considerou que houve conivência, mas não obteve provas suficientes e significativas para determinar se havia de fato uma política de Estado por parte de Uganda para que a intervenção armada objetivasse a exploração dos referidos recursos. Ainda assim, ponderou a Corte que o Estado possui um dever de vigilância sobre pessoas privadas em um estado de ocupação beligerante.
Em sequência, a Corte passou a analisar, então, as contra-reivindicações apresentadas por Uganda. A primeira, como apontado anteriormente, tinha como escopo o apontamento de que a RDC teria disponibilizado ajuda - tanto militar quanto econômica - para grupos paramilitares anti-ugandeses ou não exercido seu dever de manutenção da ordem em seu território quanto a tais tropas, caracterizando, assim, atos de agressão que iriam contra as determinações do direito internacional. Contudo, a Corte concluiu que não havia indícios suficientes para creditar a designação de agressão contra a RDC, não vendo, portanto, fundamento na primeira contra-reivindicação ugandesa.
Enquanto isso, a segunda contra-reivindicação, voltada para questões diplomáticas, apresentou uma complexidade maior, de maneira que a consulta dos juristas da CIJ pautou-se, entre outros dispositivos, na Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas, observando-se que houve violação de tais aparatos tanto nos ataques e maus-tratos contra membros da diplomacia ugandesa quanto na remoção de propriedades e documentos da embaixada do país. Sendo assim, havia uma constatada violação do direito internacional por parte da RDC.
Por fim, a partir das conclusões dispostas, a sentença final apontava que ambas partes possuíam indenizações em aberto entre si, mas que essas deveriam ser negociadas entre elas, de maneira a facilitar uma redução das hostilidades e a promoção das normas do direito. Assim, os Estados envolvidos deveriam remeter regularmente à Corte relatórios acerca do andamento das negociações e diálogos. Contudo, observando a inexistência de um acordo, a RDC solicitou que a própria CIJ emitisse uma sentença com as indenizações devidas por Uganda. Assim, o órgão da ONU passou a analisar pedidos das partes desde 2015 para a observância dessas questões e a emissão de um veredito, de modo que as audiências públicas ocorreram entre os dias 20 e 30 de abril de 2021.
Conclusões gerais sobre o caso
Como se pôde observar, as relações marcadas pela instabilidade no sistema internacional são constantes, o que reitera a importância dos dispositivos internacionais que visam consubstanciar a proibição do uso da força e a redução das atividades de agressão, promovendo a busca pela paz, ordem e segurança internacionais, além de uma consequente proteção dos direitos humanos, principalmente de civis afetados pelas conflitualidades.
O caso mencionado, destarte, está intimamente conectado com essas perspectivas, uma vez que as instabilidades se colocavam como crescentes na região entre os países destacados, de modo a fornecer o terreno para a ascensão das hostilidades e da utilização de meios não-diplomáticos para a Razão de Estado, ou seja, para os objetivos privados de cada ator envolvido. O desequilíbrio regional pelos próprios conflitos internos afeta o papel regional dos Estados e desencadeia um processo de crise.
*Theo Scudellari, Giulia Romay e Hélio Pinto são pesquisadores do Observatório Cosmopolita da Corte Internacional de Justiça (CIJ).
Referências:
HEFFES, E. The Oxford Handbook of the Use of Force in International Law. Journal on the Use of Force and International Law, 2016. v. 3, n. 2, p. 322–334.
MARRONE, P. Chambers, RT. Etica e Politica, 2013. v. 15, n. 1, p. 583–605.
Comments